quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A ESTRANHEZA FAMILIAR


Manuscrito medieval das obras de Terêncio



Haverá assuntos estéticos e outros inestéticos?

A pergunta é-me suscitada pela seguinte apreciação de Goethe sobre Guido Reni (1575/1642):

No momento em que a sensibilidade divina de Guido, o seu pincel, que só devia ter pintado o que de mais perfeito existe, nos atraem, logo gostaríamos de desviar os olhos dos assuntos e motivos detestavelmente estúpidos, para os quais não há neste mundo impropérios que cheguem. E isto repete-se: é só anatomia, cadafalsos, esfoladouros, só sofrimentos do herói, nada de acção, de interesse vivo, só coisas para preencher as expectativas fantasiosas do público.” (Viagem a Itália)

Hoje, pelo contrário, parece que nada está fora do alcance da arte, a começar pelo mais comezinho dos objectos, transfigurado pela sua simples exposição decontextualizada, a acabar no que mais repele os sentidos (com uma ideia percursora no verso de Shakespeare (Macbeth): “O horrível é belo, o belo é horrivel"), ou os deixa completamente inanes (por exemplo: “Branca de Neve” de João César Monteiro).

A arte que terá começado por exprimir um sentimento religioso e, na era mercantil, constituiu sempre uma reserva do espírito e da subjectividade, aproxima-se, talvez, dum limiar em que deixa de fazer sentido uma frase como: “nada do que é humano me é estranho”(Terêncio). Porque, de facto, o que não é humano começa a ser-nos, cada vez, mais familiar.

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