terça-feira, 27 de dezembro de 2005

O FRUTO PROIBIDO


Adão e Eva (Ticiano)


"Talvez os vícios, as depravações e os crimes sejam quase sempre, ou mesmo sempre, na sua essência, tentativas para comer a beleza, comer o que é necessário olhar apenas. Eva marcou o começo. Se ela perdeu a humanidade ao comer um fruto, a atitude inversa, olhar um fruto sem o comer, deve ser o que salva."

"Espera de Deus" (Simone Weil)


Esta hipótese vai mais longe do que a de Sócrates quando diz que ninguém é mau voluntariamente.

Na imagem weiliana da fome coloca-se o desejo no centro da alma e o mundo enquanto necessidade e harmonia como seu alimento.

Este desejo, porém, não se confunde com a líbido freudiana e não pode ser satisfeito pela posse da beleza. É o olhar que salva (como a serpente de bronze de Moisés, que Simone cita).

Por isso, o crime é, como em Sócrates, uma violência devida à paixão e à ignorância. Mas a Beleza é menos abstracta do que o Bem, sendo na concepção de Simone Weil um atributo do universo que também somos.

O desejo, pelo que tem de sensível e secreto permite ultrapassar os limites do sujeito da consciência e representa melhor o ser humano na verdade da sua incompletude.

E a injustiça, do mesmo modo, não pode ser completamente solúvel no social.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2005

DIA DE FESTA

Neste dia, as ruas estão desertas. As portas fechadas, as vizinhas não espreitam por detrás das cortinas.

Dum lugar mais alto, pode ver-se um adulto que brinca um momento com uma criança, para voltarem depois para a mesa que os espera.

Outras pessoas chegam e desaparecem dentro das casas.

O vento é a legenda destas cenas minúsculas, como uma aldeia vista por Bruegel, o velho.

Alguns homens juntam-se no único café aberto e ouve-se apenas um sussurro, como se intimidados pela felicidade geral.

Ao atravessar a cidade vazia o que me era mais sensível era o significado disso: o recolhimento de todos, ao mesmo tempo, como se numa única e grande casa.

domingo, 25 de dezembro de 2005

HALTEROFILISMO






Encontrei-o na Ribeira. Cumprimentámo-nos friamente, sem nos determos. Ele não perde uma ocasião para humilhar o seu semelhante, mas fá-lo, julgo eu, convencido de que está a limpar o mundo dos incapazes e a afirmar uma espécie de aristocracia da inteligência. É um homem sem cultura, no verdadeiro sentido da palavra, embora esteja muito bem informado. Habituou-se a este vácuo criado à sua volta que recebe como uma homenagem. Há pessoas que se vê logo que foram talhadas para o poder, que é militar na sua essência, como alguém disse. Um feitio assim intratável proporciona algumas alegrias de escravo quando se mostra benevolente para nossa surpresa. Nessa incoerência, adivinho que ele não perdeu a esperança de fazer amigos. É preciso gozar de muito boa saúde e ter uns nervos sólidos para aguentar a sua reputação. Vai acontecer-lhe, com a idade, o que acontece com os músculos dos halterofilistas.

sábado, 24 de dezembro de 2005

A NOMEAÇÃO DAS NINFAS



Neste aniversário de "Lolita", de Nabokov, não me é possível ter o texto presente (precisaria de lê-lo outra vez), mas apenas o filme de Kubrick, o que não aconteceria se este não fosse a obra-prima que é.

Se há um escândalo no romance deste europeu de meia-idade que perde a cabeça por uma ninfeta, o pecado parece atenuado pela "perfeição" sexual de Sue Lyon e pelo papel lastimável e patético que cabe a Humbert Humbert (um James Mason não se podia mais pai de família) no enredo de sedução e ludíbrio em que se queimou o que foi buscar lenha.

Assim, a teia maquiavélica urdida por um Peter Sellers genial ao longo das suas metamorfoses funciona como uma máquina penal deliciosamente hipócrita.

AREIA NA AMPULHETA

A areia fina e plana junto ao mar em Leça. Uma piscina abandonada nos rochedos.

Já não tenho as pernas dos dois corredores no seu fato de borracha.

A consolação, que é o prémio da atitude chamada filosófica, não é ainda a verdade.

A juventude não nos pertence enquanto centros do mundo. A eles, porque não podem pensar isso, a mim, porque só sentiria a falta.

Mas quando o centro está em toda a parte, o peso e a asa são um só.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2005

UNA FURTIVA LACRIMA

A última cena de "A woman of Paris" (1923), de Chaplin: a carroça em que essa mulher traviatta e regenerada se cruza no caminho com a limousine do seu antigo "protector", sem se reconhecerem.

Depois do outro tema forte da trágica influência dos pais sobre os amores dos filhos, este, da virtude da pobreza e duma vida dedicada aos outros.

Sem a presença de Charlot, o que é que salva este filme de se tornar um dramalhão?

A inspiração dum primeiro amor.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2005

BALADA DE NEVE


A: Arcabuz Japonês B: Arcabuz inglês (culatra rabo de peixe)

O BES, nesta quadra, quer presentear-nos com um espectáculo de neve, e há-de consegui-lo, se não for travado pela burocracia.

Já importámos o Halloween e o Santa Claus, com o seu trenó puxado pelas renas. Era uma pena que só por uma má disposição da Natureza, não tivéssemos neve também.

Esta outra evangelização é talvez mais eficaz do que a dos missionários, que tinha sempre por perto o arcabuz.

Tem o pequeno inconveniente de nos deixar sem alma.

MARTÍRIO SEM CAUSA



Enfim, vi duma ponta à outra um lado a lado das presidenciais.

Não para me informar, certamente. Para me decidir por um detalhe, pelo que revela um descontrole? Nesse caso, a surpresa só poderia vir de Cavaco que é o controle em pessoa.

Soares, permanentemente ao ataque (como que a calar os que o acusam de estar gasto) e a criticar a postura e o temperamento do outro, não sentiu a necessidade de se explicar nem de dar a conhecer o que pensa sobre o cargo, a não ser picado pela ironia do adversário.

De facto, ele sabe que não há nada de novo a dizer. Está tudo dito e redito.

Por isso é que o silêncio é temível, porque dá espaço à imaginação.

Compreende-se, assim, que para Soares o esclarecimento necessário não era o das suas ideias, mas o do vazio daquele silêncio.

Apesar de tudo, não conseguiu demonstrar que não há nada por detrás da postura cavaquista (a televisão só permite o banal e as generalidades) e fez do seu opositor um mártir, sem causa para muitos, mas um mártir.

A questão é que a nossa sociedade mediatizada, na ocorrência, mais do que uma ideia e de um discurso transparente quer ser seduzida por uma imagem.

Está feita a mise en scène da crise. Falta-nos o ícone para resolvê-la numa atmosfera de unção e de sacrifício.

Alguns chamam a isso um clima de confiança.

terça-feira, 20 de dezembro de 2005

JOKANAAN

Se quisermos encontrar na música o exemplo duma obsessão suicida, temos de ouvir a litania de Salomé quando pede a cabeça de Jokanaan, em Richard Strauss.

É também uma fome surda que nenhum alimento aplaca, porque não é física.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2005

FLOREADOS


Robert Walser (1878/1956)


Canetti conta, em "La Langue sauvée", que foi apanhado pelo seu professor de Latim a ler, na aula, um texto de Walser.

Depois de cheirar o que era, o professor perguntou-lhe que tal o achava:

"Eu sentia que ele estava zangado, mas não queria dar-lhe inteiramente razão porque o livro, apesar de tudo, me atraía enormemente. Adoptei um meio termo: -Tem demasiados floreados, disse eu.

- Demasiados floreados? exclamou.

É um mau livro! Isso não vale nada! Podemos passar bem sem a sua leitura!

Em suma, uma condenação sem apelo. Eu cedi, fechei o livro a contragosto e continuei a lê-lo fora das aulas, com tanto maior curiosidade. A minha paixão por Robert Walser que, ao princípio, estava mais vacilante do que outra coisa talvez tivesse acabado ali sem a intervenção do professor Walder."

Refiro esta história porque só agora comecei a ler o meu primeiro Walser ("A rosa") e, quanto mais não fosse fiquei muito interessado pela sua estranha identificação com o príncipe Míschkin do "Idiota" de Dostoiewski. Ele diz que o conteúdo deste romance o perseguia por todo o lado.

Esta personagem ingénua era duma bondade desconcertante, parecendo dar razão ao aforismo que diz que facilmente se confunde um homem bom com um tolo, e acabou num hospício no fim do livro. Ora Walser, em cujas páginas verifico uma sensibilidade encantadora passou os últimos vinte e sete anos da sua vida num manicómio perto de Hersau.

A FORMATAÇÃO DA POLÍTICA

Os pseudo debates das presidenciais são o fim dum percurso de submissão da política à televisão.

Não que o espectáculo seja de todo destituído de interesse, mas em suma, isto está tão longe da participação democrática e do esclarecimento como um anúncio comercial o está da objectividade.

É mais massagem do que mensagem, como afirmou Mc Luhan.

Podemos medir o caminho percorrido, comparando a mais famosa parada de esgrima, com saída para o jocoso que nos foi dado ver no pequeno ecrã, com o "olhe que não" da última versão paródica.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2005

A PÚRPURA COMO MEIO



Jean-François Paul de Gondi, cardinal de Retz (1613-1679) .


Uma das coisas que me intriga em Simone Weil é a sua admiração pelo Coadjutor de Paris ( o futuro Cardeal de Retz ).

Ninguém pode deixar de render-se ao estilo do homem, à sua energia, lucidez e coragem, ao seu golpe de asa. Mas, enfim, era um ambicioso para quem a sotaina e o barrete cardinalício foram o que as armas ou a sedução representaram para outros: um meio para atingir a fama e o favor do povo (aquela que, de qualquer modo, só as "Memórias" lhe garantiram em absoluto).

O que há então neste homem tão próximo da irreligião e da mundanidade que justifique a excepção da filósofa, cujo juízo foi noutros casos tão severo e exclusivo?

Retz, decerto, não procurava a grandeza à maneira dos Romanos e foi, talvez, se não é uma contradição nos termos, um poeta da política, apaixonado pela acção pura, numa época em que a política não se tinha tornado ainda numa profissão e quase no estigma que é para nós hoje.

E vejo no amor de Simone pela Pólis grega uma possível explicação para admirar este homem verdadeiramente livre no meio das facções e dos perigos.

terça-feira, 13 de dezembro de 2005

MOTOQUEIROS E GAIVOTAS



Há dias em Vila do Conde, junto ao forte e à capela da Senhora da Guia, em que Régio gostava de casar, o habitual rendez-vous dos blusões de couro, das luvas e dos capacetes, com as suas montadas faiscantes. Conversam com um pé no estribo e outro em terra, ou sentam-se na esplanada com uma bebida.

Mais adiante, sobre um rochedo, um grupo de órfãos do convento lançam ao horizonte os seus gritos de gaivota.

E, como pano de fundo, o mar onde o estrondo das motas e o escape adolescente se acordam no silêncio.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2005

O MORALMENTE CORRECTO



Passei hoje pela Praça da República e pelo "Rapto de Ganymedes" que se encontra na parte norte do jardim, esquecido no seu verdete.

E perante esta história do pai dos deuses rendido aos encantos daquele que viria a servir o néctar na corte olímpica e, mais uma vez, recorrendo à metamorfose para iludir os ciúmes de Hera, não posso deixar de pensar na polémica dos crucifixos.

Estes, estiveram no Limbo (agora abolido por Bento XVI) desde a ditadura, donde foram arrancados pela deusa Razão que, como se sabe, não suporta contradições lógicas, nem faltas de consequência.

Tremo de pensar que alguns símbolos da Antiguidade Clássica sejam também expulsos do Limbo e possam ser objecto duma reavaliação, moralmente correcta.

domingo, 11 de dezembro de 2005

O MILAGRE DA INFORMAÇÃO


Tales de Mileto

"Então, o encanto pernicioso da Itália actuou nela e, em vez de adquirir informação, começou a ser feliz."

E. M. Forster

A informação tornou-se a ilusão que nos impede de saber.

É a montanha de cuja massa impressionante sai o minúsculo animal desorientado.

Mas sem ela haveria alguma ciência, ou seria possível a grande cidade?

É preciso responder que não. E, no entanto, dizer que de posse de toda a informação ainda não sabemos o que fazer com ela, que estamos como no princípio em que temos de decidir sem provas e escolher um caminho onde não há caminho.

Verificamos que o milagre da informação é que todo o universo conhecido se pode converter em informação, e isso não é muito diferente do idealismo mais extremado.

Mas Tales quando dizia que tudo são deuses era menos supersticioso.

sábado, 10 de dezembro de 2005

CLARUM PER OBSCURIUS


Jules Lagneau (1851/1894)

"Para o meu antigo aluno,
Maurice Toesca.

Este livro, dizia-lhe eu, tem esta facilidade que consiste em ser difícil, e esta clareza que vem duma extrema obscuridade. O meu mestre deu-me a conhecer a sua divisa, Clarum per obscurius que é um grande segredo. Leia pois estas etapas do homem (como eu gosto de dizer) e pense em mim até me impedir de morrer.

De resto, não se morre!

Coragem, pois, meu querido amigo."

(Dedicatória de Alain num exemplar de "Les Dieux")


Em Esmoriz, o céu. O azul esconde o firmamento, como um olhar que não nos revela a alma.

Não há astros, nem lua, a luz apenas e a cor.

Pelo esclarecimento, a treva cada vez maior. O contrário da divisa de Lagneau, "clarum per obscurius".

Assim na linguagem de todos os dias a evidência esconde as espirais do passado.

Por isso a "tabula rasa" é uma utopia de geómetra.

A abolição dos exames a português parece um ovni vindo dessa terra que não existe em lado nenhum.

terça-feira, 6 de dezembro de 2005

PENÉLOPE



Por cinco minutos, entre duas paragens, aquela mulher achou que valia a pena.

Tirou do saco de plástico a seus pés a renda e as agulhas e deu ao dedo, como um tear a que voltou a luz. Tem a vista cansada, pela inclinação da cabeça.

De vez em quando, olha para a rua, como se fosse um novelo que ameaça rolar pelo chão.

Parece-se comigo aquela mulher.

Também gosto de tirar o livro do bolso e ler cinco minutos coisas que esqueço logo.

Linha a linha, a leitura me acrescenta, bordado que a memória desfaz, sábia Penélope.

Porque também eu espero.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2005

A ALIENIZAÇÃO DOS MEDIA


"Alien 3" de David Fincher (1992)

O editorial de Jean Daniel no "Nouvel Observateur" vem ao encontro do que aqui já expus sobre os "banlieu 2005".

Apesar de serem reais os problemas de integração, de racismo étnico e cultural, a que os Franceses facilmente dão o flanco, não haveria acontecimento sem a televisão, o telemóvel e a internet.

A criação dos factos e a sua sucessão em cadeia foi, talvez, espoletada por uma única imagem, energética, potencialmente explosiva no contexto nacional e internacional, mas ainda sem legenda.

A emulação e os comentários deram-lhe o nome e a palavra.

Os media, como um "alien" que inseminasse a vida mostraram, uma vez mais, o seu terrível poder.

sábado, 3 de dezembro de 2005

A MAGIA DO NATAL




Gosto muito de cinema e mesmo do cinema na televisão, embora aí perca toda uma dimensão que faz, talvez, o seu encanto na minha memória.

Mas esse sentimento e essa tolerância não se estendem à televisão enquanto tal.

E penso que é a sua função psicótica (contra a ideia dum desafecto do espectador, na linha dum Mc Luhan) que me repele.

A ideia de que é possível transformar a vida em entertainment (quaisquer que sejam, evidentemente, os conteúdos), com um serviço canalizado a ocupar-nos todos os instantes e horas, a tomar conta dos nossos medos e dos nossos desejos como se a sociedade fosse um lar da terceira idade, é isso que a diferencia tão radicalmente do cinema.

Eu sei que ninguém passa a vida diante da televisão (a não ser alguns tele-dependentes), mas não é preciso tanto para já vivermos no entertainment.

A coisa mais lúgubre que se pode imaginar é, por exemplo, a expressão magia do Natal, na fala da publicidade e da televisão.

Magia é mesmo o que eles matam em primeiro lugar.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2005

O BOOMERANG

O lixo por recolher parece o boomerang do consumismo sobre as nossas cabeças.

Uma greve que vem pôr-nos diante dos olhos a urgência das funções mais humildes.

E ao contrário da greve dos juízes, esta não se limita a entupir mais um pouco uma burocracia já entupida. Para além de ser justa.