terça-feira, 30 de setembro de 2008


(José Ames)

CONSOLAÇÃO BALZAQUIANA


Honoré de Balzac (1799/1850)



"Mas o barão era por de mais artista. E agora que desde havia um momento confundia a sua situação com a descrita por Balzac, refugiava-se de alguma maneira na novela, e para a desgraça que o ameaçava talvez e , em todo o caso ,não deixava de amedrontar, ele tinha essa consolação de encontrar na sua própria ansiedade aquilo a que Swann e também Saint-Loup teriam chamado de qualquer coisa de "muito balzaquiano".

"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)


A arte proporciona-nos o modelo dos nossos próprios sentimentos. Sem a forma que ela molda em nós, não poderíamos ter consciência do que sentimos, porque seria pouco mais do que sensação e desordem.

Mas deveríamos, para sermos mais exactos, alargar aqui o conceito de arte. Não são só os romances e os filmes que modulam e enformam estes movimentos do coração. E antes desses meios, relativamente modernos, o culto religioso, a arquitectura e a dança, conforme a lição de Émile Chartier, foram os nossos mestres.

Não há templo que não nos contenha, no duplo sentido da palavra. O espectáculo da harmonia do colectivo na liturgia (como é impressionante a assembleia perante os mortos!) ou na dança age em nós profundamente.

Para o barão de Charlus, a identificação na desventura com a princesa de Cadignan exonera-o da sua ansiedade e duma perspectiva ameaçadora.

Proust diz que é preciso ser artista para que uma tal identificação funcione, outra maneira de dizer que é preciso ser sensível à forma das coisas para criar a beleza a partir do caos.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008


Arraiolos (José Ames)

O TEMPO DE UM REGRESSO




As personagens de "Muriel" (1963, Alain Resnais) não estão no tempo "real". De facto, encontram-se entre os destroços do passado que, constantemente, provocam "falta de sinal" e erros de comunicação.

Seria limitar o alcance do filme dizer que a guerra (a da Argélia; os acordos de Évian são do ano anterior), com a sua psicologia e os seus traumas, explica a disfunção de todos com todos.

Embora o título remeta para um caso de tortura (da jovem argelina Muriel) que obceca Bernard (Jean-Baptiste Thiérrée) e o leva ao acto de violência final sobre um dos torcionários, a guerra aqui é apenas um caso de radicalização da memória, como tempo que se recusa a correr, que volta com os seus fantasmas e interfere com o mundo dos vivos.

Todos mentem e escondem alguma coisa. Alphonse (Jean-Pierre Kérien) que foge da mulher, Simone (Françoise Bertin), quando Hélène (Delphine Seyrig), que não sabe bem o que quer, lhe vem lembrar um amor de outros tempos que cada um ressuscita à sua maneira, tão difícil é resistir a uma esperança, mesmo louca!

Hélène está desiludida por ele já ter o cabelo todo branco e retrai-se na sua apatia, de que só o vício do jogo consegue fazê-la sair.

Tanto desencontro desencadeia a cena final, de cada um para o seu lado, Alphonse escapando ao cunhado (Jean Champion) que o levava de volta a Simone e Hélène fugindo a todos em completa desorientação. Esta cena não é sem lembrar, como alguém disse, a corrida cruzada de uns e outros (as classes e os sexos) no final do filme de Jean Renoir, "La Règle du Jeu".

A música de Werner Henze e a voz do soprano Rita Streich contribuem para a estranheza do comportamento das personagens, joguetes que são de Mnemosine, a deusa da Memória que nos impede de escaparmos a nós mesmos.

domingo, 28 de setembro de 2008


(José Ames)

O PÓRTICO




"Os professores começam com paixão. Os pedagogos adquirem-na ao ficar fascinados pelo encantamento dos estudantes. Com efeito, o sorriso de quem está a aprender, no rosto de um estudante, provoca mais dependência do que qualquer droga ou narcótico. É a paixão que anula essa doença mortal e que vai matando a aula, o aborrecimento do professor, a única situação que inibe absolutamente tanto ensinar como aprender."

"Memórias de um economista" (Peter Drucker)


Percebe-se como o tempo e o modo são aqui essenciais. Coisas como a dimensão da classe, a sua disciplina ou indisciplina, a saúde e o vigor de quem ensina podem influenciar muito a situação.

Os melhores professores pagam aquele sorriso com um árduo trabalho de preparação. Um dos grandes mestres do seu tempo, Alain, tinha por detrás do seu aparente estado de graça as horas extenuantes da véspera. Claro que os alunos nem se chegavam a aperceber. Mas ele conta nos seus diários que pensou morrer ainda jovem, de cansaço.

Este esforço é inviabilizado à partida pelo nosso trepidante modo de vida. Seria preciso conquistá-lo ao stress duma vida normal. Assim, os bons professores são raros, mesmo quando têm algum talento natural e bons conhecimentos do que ensinam.

A pressa para cumprir um programa, a desorganização que submerge todos os planos e todas as boas vontades acabam com o resto da esperança.

Com os meios que a tecnologia põe ao alcance de todos e a grande inclinação da juventude para deles tirar partido, haveria, talvez, que libertar o professor e os alunos do que se pode aprender "interactivamente". As qualidades pessoais e a capacidade de despertar o sorriso de que nos fala Drucker teriam um papel fundamental. Um ensino mais livre quanto aos programas, mas com avaliação objectiva.

Não sei se os gostos da juventude e os novos hábitos culturais dão alguma hipótese à paixão de ensinar. À partida, o que se aprende não tem nada a ver com aquilo que nos dá prazer no dia a dia.

Parece que essa distinção se deveria tornar mais sensível e fisicamente presente, como um pórtico que se tivesse que atravessar.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008


Cortegaça (José Ames)

A PUREZA DAS FONTES




"Se não houvesse neste mundo pureza perfeita e infinita, se apenas houvesse pureza finita que o contacto do mal esgota com o tempo, jamais poderíamos ser salvos. A justiça penal fornece uma ilustração terrível desta verdade. Em princípio é uma coisa pura, que tem por objecto o bem. Mas é uma pureza imperfeita, finita, humana. Também o contacto com o crime e a infelicidade misturados esgota essa pureza e põe, em seu lugar, uma sujidade que só por pouco não é igual à totalidade do crime, uma sujidade que ultrapassa em muito a de um criminoso em particular."

"Espera de Deus" (Simone Weil, tradução de Manuel Maria Barreiros)


Esta linguagem mística (a salvação, a pureza infinita) pode ser facilmente traduzida noutra, mais terra-à-terra, mas vejamos o que se perde com isso.

Claro que a pureza de que aqui se fala é, no fundo, uma ideia platónica. Não existe, nem poderá nunca existir essa pureza encarnada. A sua eficácia depende, precisamente, de não poder ser alcançada, mas de criar uma tensão para um valor (como noutro passo diz Simone), incorruptível, que não se esgota com os fracassos ou os aparentes desmentidos da realidade. Porque a realidade está num outro plano. Sem qualquer coisa como essa ideia, jamais nos levantaríamos do primeiro tropeço.

Somos, então, todos platónicos? Mas não é isso que nos comprova a constância dos ideais através das vicissitudes?

Todos os crentes que vêem um ideal "descer à terra" têm de lutar enquanto puderem e através de comportamentos que se aproximam muito da denegação psiquiátrica da realidade por salvarem "a menina dos seus olhos" do contacto com a mácula da banalidade, quando não da injustiça e do crime.

É nisso, pelo menos, que a mística se distingue. A confusão dos planos nunca tem lugar. Daí que os cépticos possam ver nela uma versão "proactiva", como se diz agora, da esquizofrenia.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008


(José Ames)

QUANDO A LÓGICA SOCORRE A INCONSISTÊNCIA


"Cubic space division" (M.C. Escher)


"A formulação de princípios baseados na prova lógica de erros, por isso, pode servir à pretensão de que a unidade existe onde as regras mudaram, no decurso do tempo, isto é, à apresentação da inconsistência como consistência."

"Niklas Luhmann's Theory of Politics and Law" (Michael King e Chris Thornhill)


Na teoria dos sistemas de Luhmann, a lógica serve, pois, para tornar possível a prova dos erros.

Uma vez que na sociedade moderna os "argumentos legais não podem ser fundados em leis naturais, verdades universais ou mesmo na racionalidade", a consequência é a de que não existe realmente fundamento ab extra, fora do sistema, embora seja vital para este apresentar-se ( a si mesmo e ao seu ambiente) como estabelecido sobre a base mais sólida e indiscutível possível.

Esta necessidade de ilusão e de camuflagem de todos os sistemas, e não só da lei, parece provir do facto de, no essencial, a sociedade moderna continuar a ser a sociedade de Deus e das verdades universais, entretanto destituídos ao nível das mentalidades e da especulação teórica.

O que faltará então para que os sistemas possam prescindir da sua legitimação e passarem a ser julgados, por exemplo, pela sua eficácia?

Mas aí é que está o problema. Os sistemas dispensam um critério acima deles (de facto, não poderiam funcionar se fossem por ele regidos) e o facto de funcionarem é a única medida da sua eficácia (com "alienação" e tudo).

quarta-feira, 24 de setembro de 2008


Penafiel (José Ames)

O SÉCULO DA GUILHOTINA


O Marquês de Sade na prisão
http://media-2.web.britannica.com/eb-media


"(...) quando foi preso sob a vigência de Robespierre, em Picpus, descreve nestes termos a sua estada: 'um paraíso terrestre; bela casa, soberbo jardim, sociedade escolhida, mulheres admiráveis, senão quando eis que o lugar das execuções é colocado positivamente sob as nossas janelas e o cemitério dos guilhotinados no centro do nosso jardim. Nós, meu caro amigo, retirámos 1800 em cinco dias, dos quais um terço da nossa desventurada casa.'"

"Sade, meu próximo" (Pierre Klossowski)


Estas cenas fazem-no ter saudades da Bastilha. Sade pode muito bem ter descrito nos seus romances um dos sistemas mais desesperados que alguma literatura já produziu, pois se serve dos instintos naturais para a destruição da própria vida. Mas diante dos sacrifícios exigidos pela deusa Razão, na versão ingénua do materialismo do século XVIII, tem de reconhecer que se podia ir muito mais longe no horror.

As fantasias assassinas do grande libertino encontram um eco surpreendente no "artificialismo" da Revolução, toda ela virada também contra a vida, tal como tinha sido antes, mesmo se se pensava atacar apenas um regime. Mas são ambas filhas do mesmo século, afinal.

Claro que as intenções dos jacobinos não eram simplesmente destrutivas: salvava-os o seu ideal humanitário, grande e vago, coisa que os distingue do famoso marquês, cujo ateísmo é, no fundo, uma provocação a Deus, para, paradoxalmente, obter dele uma resposta.

"O regime da liberdade, para Sade, não deveria ser - e não será de facto - nem pouco mais ou menos, a corrupção monárquica levada ao cúmulo." (ibidem)

terça-feira, 23 de setembro de 2008


(José Ames)

UMA OUTRA ITÁLIA?


"Gomorra" (2008-Matteo Garrone)


A periferia de Nápoles que "Gomorra" de Matteo Garrone nos mostra está nos antípodas de qualquer "Viagem a Itália" (mesmo a já torturada visão de Rosselini).

Dir-se-ia que já não estamos na escala humana. Estamos talvez na fronteira que dominam as Erínias, mas o homem não.

Nas próprias palavras dos maffiosi , trava-se em Scampia (um dos esquálidos subúrbios) uma guerra em que é preciso matar para manter posições.

A teia de cumplicidades com o crime organizado apanha desde crianças estes "precários" da contra-sociedade, até o momento em que, perante o dilema de "ou estás connosco ou contra nós", devem entregar a sua própria humanidade.

Vemos como esta guerra se alimenta a si própria e como a polícia se rendeu à sua inevitabilidade. Perguntamo-nos se os cappi dessa máfia (que nunca vemos) são realmente a causa de alguma coisa, se decapitada a organização, estaríamos à vista duma solução. Mas penso que os chefes são peças tão substituíveis (embora mais culpados) como qualquer operacional nado e criado em Scampia.

Como, pois, pensar a Itália que amamos e isto, ao mesmo tempo? Ocorrem-me aquelas outras visitas que no tempo da URSS alguns intelectuais foram convidados a fazer para, no final, verem apenas as "aldeias Potemkine". De resto, a essência do mal pode sentir-se, sem se ver...

Penso também, ao contrário, em como se poderia entrar num país pela sua leprosaria e sair por uma lixeira a céu aberto, como a que vemos no filme. Tudo isso seria verdade de facto. As radiografias de um cancro também são verdadeiras, mas que país e que pessoa teríamos assim diante dos olhos? Todo o país, como todo o homem pode ser olhado abaixo da cintura. O olhar microscópico oferece-nos outras paisagens e estamos sempre no aqui e agora.

Será a Camorra napolitana uma espécie de Vesúvio humano em erupção, mas circunscrito a um local e a um determinado meio social? Nunca poderíamos estar certos disso, porque tudo o que é humano está ligado e a chaga pode rapidamente atingir toda sociedade.

Ainda não se inventou um apartheid eficaz, e ainda bem.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

A SÍNDROME DO CORTA-UNHAS





"Aquilo que se chama terrorismo insere-se na alteração estrutural da opinião pública na era da mediatização total. Quem quisesse realmente combater o terrorismo teria de cortar as suas raízes, que mergulham no fascínio que os comediantes do terror e o seu público sentem relativamente à morte - e isso seria chocar com as leis do divertimento globalizado."

"Palácio de Cristal" (Peter Sloterdijk)


De facto, encontramos uma grande união de esforços por parte dos vários actores, no contexto do terrorismo, para dar a este fenómeno uma dimensão quase metafísica.

Sloterdijk chama-lhe comédia do inelutável, que leva, depois do 11 de Setembro, por exemplo, os viajantes a terem de "sacrificar às exigências da limitação do risco nos transportes aéreos os corta-unhas que levam na bagagem de mão."

Este exemplo de diabolização miniatural (do corta-unhas) dá a medida da profundidade da nossa imersão na atmosfera mediática que, para provocar o frisson nos consumidores do "palácio de cristal", é atravessada, de quando em vez, e em doses homeopáticas, pelo raio da morte.

Funciona, pois, uma bolsa de segurança que é tão susceptível aos movimentos da opinião quanto a bolsa de valores.

E também não podemos dizer que a imaginação securitária seja independente dos corretores mediáticos.

Pode ser que, como o provaria a aparente união de esforços, o palácio globalizado precise que alguém lhe parta os vidros de vez em quando.


Alcobaça (José Ames)

O MÉTODO DE MISS ELSA




"Cada uma dessas pessoas procedia da mesma maneira que Miss Elsa procedera na minha quarta classe. Descobriam os pontos fortes de um estudante e estabeleciam objectivos para desenvolver esses pontos fortes. Estabeleciam objectivos de longo prazo e de curto prazo. Só então se preocupavam com os pontos fracos do estudante, que emergem como limitações naturais ao desenvolvimento total da força realizadora do mesmo estudante."

"Memórias de um economista" (Peter Drucker)



Os óptimos resultados que o próprio Drucker obteve, como estudante, com este método de fixação de objectivos levaram-no, sem dúvida, à ideia de aplicar um método semelhante na empresa.

Quem conheceu a voga que teve a teoria da gestão por objectivos, sabe que ela foi sempre uma imposição patronal tendo em vista a melhoria dos resultados e isso não foi diferente de outra moda, mais antiga, das pausas no trabalho e da ginástica de pausa.

Ao contrário do que se passava na escola de Miss Elsa, a aptidão do estudante (neste caso, do trabalhador) era colateral ao objectivo principal do rendimento da organização.

Essa diferença explica, talvez, por que a teoria é apenas uma entre outras e não teve os efeitos espectaculares que Drucker esperava.

domingo, 21 de setembro de 2008


(José Ames)

O RAIO VERDE


"O Raio Verde" (1986-Eric Rohmer)



Delfine (Marie Rivière) é uma fatalista. Acredita que não pode contrariar a sorte que a condena à solidão.

No seu caminho, surgem-lhe sempre sinais de como as coisas têm de correr no futuro. Uma carta virada é afinal a dama de espadas que ela julga anunciar sempre o pior.

Considerando-se, à partida, infeliz e desinteressante para o sexo oposto, vai cortando todas as pontes que um ou outro rapaz, apesar de tudo, lhe lança.

A sua sorte muda quando encontra outra carta, mas desta vez, com a dama de ouros. Logo a seguir surpreende num grupo uma conversa sobre um romance de Júlio Verne ( "O Raio Verde"). Fica a saber que o último raio do sol quando desaparece no horizonte, se as condições atmosféricas forem favoráveis, tem essa cor. Além disso, supõe-se que quem o vir pode ler no coração de outra pessoa.

Sob tão favoráveis auspícios, Delfine atreve-se a sair da sua passividade e a forçar um pouco as coisas com um rapaz que espera o comboio para Saint Jean-de-Luz e que começa a conversa confiando-lhe ter lido já o livro que ela tem nas mãos: "O idiota", de Dostoiewski.

Claro que o final só pode passar-se diante do sol posto e do raio verde.

Delfine não era, felizmente para ela, do tipo de fatalista que se fecha aos novos sinais que podem significar uma mudança da sorte. Nesse sentido, era, alternadamente, pessimista ou optimista, que é melhor do que decretar que nada tem remédio.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008


"Cambridge" (José Ames)

A VIENA DE FREUD





"A emergência da psicanálise é muitas vezes explicada, principalmente na América, como uma reacção à 'repressão sexual vitoriana'. Talvez existisse essa 'repressão' na América, mas é duvidoso que tal fenómeno existisse na Inglaterra, a não ser durante breves anos. Não existia na Áustria onde o jovem Sigmund Freud cresceu e começou a praticar. Pelo contrário, a Viena do fim do século XIX era sexualmente permissiva e o sexo florescia abertamente em toda a parte."

"Memórias de um economista" (Peter Drucker)


Eis um dos mitos "freudianos" que denuncia este espectador (bystander), como gosta de se chamar o papa do management, nas suas memórias, evocando a sua Viena natal.

A ansiedade sexual das mulheres da classe média, sobretudo judias, que procuravam o nº 19 da Berggasse Strasse, devia-se, não a uma repressão actual, mas a uma drástica mudança dos costumes, a uma grande abertura sexual com que essas mulheres, dadas as suas raízes culturais, não sabiam como lidar.

Talvez que a conclusão a tirar desta correcção dos factos, segundo Drucker, seja a de que a libertação, neste caso, em relação aos preconceitos sobre o sexo, é menos o produto das ideias revolucionárias do que da nova moral e dos novos comportamentos a que essas ideias vêm dar, post factum, a forma consciente.

Pense-se no papel dos contraceptivos na actualização das ideias de libertação sexual que, sem eles, não produziriam a mudança dos costumes.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008


"Flush" (José Ames)

O CORPO MEDIÚNICO


"The goldfish" (Paul Klee)


"Mas a interrogação da pintura visa, em todo o caso, essa génese secreta e fervorosa das coisas no nosso corpo.

Não se trata, portanto, da pergunta daquele que sabe àquele que ignora, a pergunta do professor primário. É a interrogação daquele que não sabe a uma visão que sabe tudo, que nós não fazemos, que se faz em nós."

"O olho e o espírito" (Merleau-Ponty)


Klee, no mesmo sentido, acredita que a função do pintor não é trespassar o universo, mas ser por ele trespassado. Como a antiga pítia se entregava a uma espécie de transe para exprimir, através do seu corpo, os rumores do mundo.

O pintor mediúnico é apenas uma das possibilidades da pintura. Mas talvez que "conceptuais" como Magritte, por exemplo, estejam na fronteira entre a escrita e a pintura.

Cézanne, ele próprio, não foi de início que "desarmou" a percepção. A sua passagem pelo geometrismo significa isso mesmo.

E o que é esta visão que tudo sabe, de que nos fala Merleau-Ponty? Não é o sujeito, nem o inconsciente freudiano. A ideia é a de que nós somos a mónada do universo que queremos interrogar pela pintura.

O filósofo emprega este verbo em vez de representar, porque como se poderia representar o que é captado para lá da percepção? O modelo da pergunta e da resposta, por outro lado, permite-nos pensar num (re)encontro.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

PODE O COMPLEXO CONTINUAR HUMANO?


O túmulo de Simone Weil, em Ashford, no Kent



"Quando o homem está a tal ponto subjugado, os juízos de valor só se podem fundar, em qualquer domínio que seja, sobre um critério puramente exterior; não há, na linguagem, termo suficientemente estranho ao pensamento para exprimir convenientemente algo assim tão desprovido de sentido; mas pode dizer-se que este critério se define pela eficácia, na condição de se entender por isso os sucessos alcançados em falso. Até uma noção científica não é apreciada pelo seu conteúdo, o qual pode ser completamente ininteligível, mas segundo as facilidades que dela resultam para coordenar, abreviar, resumir."

"Réflexions sur les causes de la liberté et de l'oppression sociale" (Simone Weil)


Simone pensa, sem dúvida, no caso da ciência, nas dificuldades que levanta uma teoria como a dos quanta e que, apesar de tudo, parece funcionar. De qualquer modo, isso significa para o pensamento um certo tipo de alienação, presente, como diz a filósofa, em todos os domínios.

Não só os novos conteúdos algébricos, que nenhum espírito pode percorrer, não são outra coisa que relações de signos, como "na própria execução do trabalho, a subordinação de escravos irresponsáveis a chefes ultrapassados pela quantidade de coisas a vigiar, e aliás eles próprios irresponsáveis em larga medida, é causa de defeitos e de negligências inumeráveis (...)"

À medida que cresce a complexidade da organização, mais cresce a dependência das máquinas e dos processos automáticos, isto é, que não envolvem uma decisão consciente.

Assim, parece que a humanização da complexidade tem qualquer coisa de utópico, o que não é, evidentemente, um argumento contra a utopia, como norma de vida.

A resposta de Niklas Luhmann representa um salto para lá desta problemática, com a comunicação no centro da inteligência dos sistemas e o homem em parte incerta.


Wells (José Ames)

TER FRACA RAZÃO




Em "In harm's way" (1965, Otto Preminger), o capitão Torrey (John Wayne) é castigado por, durante o episódio de Pearl Harbour, se ter desviado da rota em ziguezague (para escapar aos submarinos) com o fim de poupar combustível e assim atingir a frente do combate, conforme instruções recebidas.

Mais tarde, a Marinha, num exemplo de reconhecimento do erro, mas sem perder a face, pela voz do Almirante Nimitz (Henry Fonda) diz: "We have been a little weak in our being right", o que deu lugar a uma reparação descontraída e quase eufórica.

terça-feira, 16 de setembro de 2008


Estremoz (José Ames)

ATRAVÉS DOS HIERÓGLIFOS


Paul Cézanne: "Rocky Landscape at Aix"


"É, portanto, juntos que se deve procurar o espaço e o conteúdo, o problema generaliza-se, já não é apenas o da distância, da linha e da forma, é também o da cor.

Ela é o lugar onde o nosso cérebro e o universo se reúnem, diz ele (Cézanne), nessa admirável linguagem de artesão do Ser que Klee gostava de citar."

"O olho e o espírito" (Merleau-Ponty)


Aquela conclusiva segue-se a um comentário sobre a experiência pré-cubista de Cézanne. As formas geométricas são "demasiado grandes" para as coisas, não dão conta da sua variedade.

Mas, então, nesse espaço "as coisas começam a mexer-se cor contra cor, a modelar-se na instabilidade."

As cores (não o "simulacro das cores da natureza") tornam-se, assim, a cifra da materialidade. Pois não é o universo que, nesses sinais, nessas gradações pré-geométricas, se apresenta. Eles são um eco distante das vozes do não-humano. Por isso, o nosso cérebro, de facto, encontra-se a si mesmo, através da natureza.

E tem razão a psicanálise ao relevar a significação dos sonhos. Sem mundo, não haveria sonho para interpretar.

As cores, na pintura, são os hieróglifos desse sonho.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008


"Zeus" (José Ames)

REQUINTADOS PASTOREIOS


"Les Amours d'Astrée et de Céladon" (2007-Erich Rohmer)


Este filme, que vem precedido do grande crédito que merece o seu autor e dos encómios dirigidos à sua beleza formal, não me parece à altura da "Marquesa de O..." ou de "A Inglesa e o Duque".

O tema é, claro, um grande desafio pelo seu anacronismo, por já não termos a chave para compreender as formas cavaleirescas do amor.

O risco de cair no bonitinho nesta evocação bucólica dos amores de improváveis pastores e pastoras por terras dos Druídas, seguindo a prolixa narrativa de Honoré d' Urfé, um autor do século XVII que lançou a moda deste tipo de retórica amorosa, não foi sempre evitado.

Salva-se o malicioso desfecho que nos transporta para a atmosfera dos "Contos Morais". Astrée, de facto, trai abertamente Céladon com o seu travesti. E estes afagos entre mulheres deveriam despertar no nosso pastor os ciúmes que o narrador proustiano sentia por imaginá-los entre Albertine e as suas amigas em flor.

sábado, 13 de setembro de 2008


Oxburgh (José Ames)

ENCONTRO COM O CENTAURO




"De repente o meu cavalo empinou; tinha ouvido um ruído singular, foi a custo que o dominei e que consegui não ser lançado por terra, depois levantei para o ponto de onde parecia vir o ruído os meus olhos cheios de lágrimas, e vi a uma cinquentena de metros por cima de mim, contra o sol, entre duas grandes asas de aço cintilante que o levavam, um ser cuja figura pouco distinta me pareceu semelhante a um homem. Fiquei tão emocionado como podia ter ficado um Grego que visse pela primeira vez um semideus."

"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)


Esta descrição por Proust da visão de um aeroplano, objecto ainda raro na altura, não é apenas a do espanto que provocaria o encontro com um centauro.

A emoção irrompe na narrativa criando um outro híbrido, não mitológico este, que anuncia o futuro do narrador e o fim da obra. Todos os pormenores, desde as lágrimas ao movimento do cavalo, são significativos e nenhum se compreenderia sem todas as dimensões do tempo reunidas.

Agostinelli, o muito amado secretário de Proust tinha desaparecido, ao largo das Antibes, em 1914, num desastre de avião. E Albertine, o avatar de Agostinelli no romance, irá morrer dois volumes à frente duma queda do cavalo.

A célebre evocação da taça de chá e da "madeleine", lâmpada de Aladino de onde sai Combrai, Guermantes e tudo o resto, tem neste episódio do passeio solitário pelas falésias o seu ponto de retorno (o génio volta à lâmpada).

Depois da morte da avó (na realidade, da mãe), a morte do amor.

A ampulheta pode ser virada.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008


"Turnerando" (José Ames)

DA TEOLOGIA À METAFÍSICA





"Há apenas alguns isolados que, assumindo o desafio lançado à Europa monárquica, ousarão dizer como Danton: 'Nós não queremos condenar o Rei, queremos matá-lo.' Mesmo Saint-Just, preocupado sobretudo em inculcar à nação um sentimento sólido dos seus direitos, afirma que se trata menos de julgar o rei do que combatê-lo como inimigo, porque não se pode reinar inocentemente."

"Sade, meu próximo" (Pierre Klossowski)


São posições como estas que, apesar de tudo, nos abrem o abismo que nos separa desses tempos teológicos que a Revolução francesa veio esgotar no seu paroxismo. Ela não é ainda o novo princípio, visto que depende do seu inimigo para existir.

A sentença de Danton e a do "anjo da morte" do Nièvre relevam duma teologia contra Deus.

Isto parece ilustrar a tese de Comte dos três estados, porque o estado metafísico que sucede ao teológico está ainda desencarnado na sua negação abstracta.

Mas duzentos anos não foram suficientes para fazer desaparecer o "instinto" teológico. Ele sobrevive nas modernas revoluções e em conceitos como a justiça de classe ou o juízo da História.

De resto, é muito provável que a lei de Comte se deva aplicar à formação do espírito. Porque a infância, com os seus deuses, é sempre teológica e a adolescência e a juventude metafísicas, pela sua necessidade de se demarcarem das gerações anteriores.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

POEMA




Olha, nós vamos resvalando,
sem saber quando, do nosso progresso
para qualquer coisa que nunca pensámos, e na qual
nos emaranhamos como num sonho,
e na qual morremos sem acordar.



"Para uma amiga" (Rainer Maria Rilke, tradução de Paulo Quintela)

Stratford-upon-Avon (José Ames)

LIBERTINOS E FILÓSOFOS


Rousseau chez milord maréchal

"Com efeito, o que a mentalidade popular, ou antes, burguesa, não seria capaz de admitir nem compreender é que aqueles que ela considerava como os guardiões da ordem social pudessem, pela sua degradação voluntária, pôr em questão a ordem social e, desse modo, derrubar todos os valores sociais."

"Sade, meu próximo" (Pierre Klossowski)


Será preciso recorrer à pulsão de morte sugerida por Freud na sua fase de maturidade para explicar o comportamento dos libertinos que, como Sade, escavaram o próprio terreno em que assentavam os seus privilégios?

As chamadas forças conservadoras dependem menos dos esforços individuais do que dum adequado funcionamento do sistema social de que fazem parte, sendo a ideia que o grupo faz de si próprio uma das principais variáveis.

O ataque dos filósofos das Luzes às ideias tradicionais, muitos dos quais foram acolhidos e celebrados pela aristocracia, como foi o caso de Rousseau, introduziu nesse meio a má-consciência e os comportamentos paradoxais.

O erro da opinião burguesa foi, como sempre é, o de desvalorizar a importância das ideias e de confundir a forma (as conversas de salão) com o conteúdo (as ideias revolucionárias).

quarta-feira, 10 de setembro de 2008


"Woods" (José Ames)

ALLONS, ENFANTS


A guilhotina

"Não houve no processo nenhuma hipocrisia. Todo a gente viu que o que estava em causa era simplesmente matar. Passou-se por cima de todas as formalidades, nesta época ainda usuais no Tribunal Revolucionário. Nenhumas provas comunicadas. Os acusadores (Hébert e Chaumette) foram recebidos como testemunhas. Nenhuma defesa por parte do advogado. Vários dos acusados não puderam falar, coisa bem necessária num processo em que eram colocados lado a lado homens acusados de crimes muito diferentes, uns de factos, outros de palavras, alguns de opinião."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)



O processo dos Girondinos é o exemplo acabado da "máquina" montada pelos homens que se volta contra os seus criadores, impotentes para se libertarem da sua engrenagem.

Não era suficiente a consciência clara por parte de todos do que estava em causa. O processo havia sete dias que não andava nem para trás nem para a frente. Michelet diz que "Era preciso guilhotinar literalmente o processo para se poder guilhotinar em seguida os acusados".

Como o júri não se tivesse ainda pronunciado, os Jacobinos obtêm da Convenção que decrete "que no terceiro dia o júri pode declarar-se esclarecido." É o que nas assembleias sindicais se chama de "lei da rolha". O requerimento para passar à votação. Mas há mais. Este decreto, da mão de Robespierre, como que "absolve" os jurados, endossando a sua responsabilidade. E com isso, de facto, corta a dificuldade como uma espada.

Ninguém, como se viu, engana ninguém, mas todos obedecem a uma necessidade exterior, com as vítimas, os fundadores da República, sacrificando-se sem revolta e entoando os cânticos revolucionários.

Tal como nos processos de Moscovo, nos anos trinta do século passado, mas sem chegarem à confirmação surreal das invenções da polícia, Vergniaud e os seus companheiros estão prontos a morrer pela grande causa e, perante o zelo terrível do que consideram a Virtude, não andam longe de se considerarem, de facto, culpados.

É um pouco académica a questão de saber em que é que a democracia poderia alterar esta situação. Faz sentido julgar este processo pelos seus critérios?

Não é precisamente o consentimento consciente de todos que se busca, finalmente, através da democracia?

terça-feira, 9 de setembro de 2008

A NECESSIDADE MATEMÁTICA


"Não é provável, pergunto, que toda a economia do universo seja conduzida por uma semelhante necessidade, apesar de nenhuma álgebra humana poder fornecer a chave que resolve tamanha dificuldade? E em vez de se admirar a ordem das coisas naturais, não pode acontecer que, pudéssemos nós penetrar na natureza íntima dos corpos, veríamos claramente porque é que era absolutamente impossível que eles pudessem alguma vez admitir qualquer outra disposição?"

"Diálogos sobre a religião natural" (David Hume)


Este argumento nasce duma analogia com a aritmética e de algumas das suas leis, como a dos produtos de 9. "Para um observador superficial, uma regularidade tão maravilhosa pode ser admirada como o efeito do acaso, ou do desígnio, mas um algebrista hábil e competente conclui imediatamente que isso é obra da necessidade e demonstra que tal deverá sempre resultar da natureza destes números."

Acreditar que uma mesma necessidade se encontra nos números e em todo o universo permite menos a Fílon, personagem deste Diálogo, prescindir da hipótese de Deus ou de uma causa primeira do que libertar o seu espírito do espanto (thaumazein, origem da filosofia, segundo Aristóteles).

É a atitude de Lucrécio que decide expulsar os deuses da Natureza.

E a analogia é pertinente por isto: o universo está de facto presente no nosso cérebro sob a forma de relações espaciais que a matemática traduz sem falha alguma.

Podemos, portanto, conceber um espírito capaz de ir muito mais longe, graças a qualquer coisa como um cérebro mais desenvolvido. Não podemos, contudo, afirmar que exista uma necessidade como a das leis da matemática fora dos processos cerebrais.


Brighton (José Ames)

UMA DIVA COM TALENTO


"La ragazza di Bube" (1963-Luigi Comencini). Naquele genitivo está resumida a história de Mara (Claudia Cardinale), uma moça de dezasseis anos, namorada de um partigiano (George Chakiris), que se conserva fiel durante um exílio silencioso, até encontrar o homem certo, um jovem da cidade que se enamora dela.

Bube é preso ao regressar a Volterra e é condenado a 14 anos de prisão pelo assassinato de um maresciallo e do filho deste. Mara decide sacrificar-se pelo prisioneiro, apesar da família, a ter aconselhado a pensar na sua vida.

É excelente a interpretação da Cardinale (que não é só uma das mais belas mulheres da tela), dando-nos todos os registos desse debate interior entre o amor e o dever, dos deslizes sucessivos da piedade e dos compromissos para o sacrifício final.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008


"The truth" (José Ames)

A UTOPIA IMANENTE


"De homine" (René Descartes)

"Isso é sem dúvida uma pura utopia. Mas descrever mesmo sumariamente um estado de coisas que seria melhor do que o que é, é sempre construir uma utopia; no entanto, nada é mais necessário à vida do que descrições semelhantes, desde que sejam ditadas pela razão. Todo o pensamento moderno desde o Renascimento está aliás impregnado de aspirações mais ou menos vagas a essa civilização utópica; chegou-se mesmo a crer, por algum tempo, que era essa civilização que se formava e que se entrava numa época em que a geometria descera à terra. Descartes certamente acreditou nisso, assim como alguns dos seus contemporâneos."

"Réflexions sur les causes de la liberté et de l'oppression sociale" (Simone Weil)


A utopia de que fala Simone é a duma sociedade em que o trabalho manual fosse considerado o valor supremo e o homem não pudesse ser mais tratado como uma mercadoria.

Talvez que hoje, com o avanço tecnológico, esse ideal nos pareça ainda mais utópico, mas o que nos devemos perguntar é se, por causa disso, a utopia se tornou menos necessária.

Deve dizer-se que uma certa ideia de progresso automático, propulsionada pelas descobertas científicas, está talvez na origem da desvalorização da utopia na consciência política. A utopia, de facto, tornou-se imanente ao próprio progresso. Espera-se que aos milagres da Era Técnica (tão típicos do fetichismo denunciado pela filósofa) sucedam novos milagres e que os eternos problemas da paz e da justiça possam encontrar, através deles, uma qualquer solução.

Essa é sem dúvida uma das molas do actual apoliticismo.

Há uma versão minimalista de uma "sociedade melhor", aliás sugerida na citação, que se confunde com o chamado reformismo e que, em termos morais, pouco se distingue da "utopia imanente".

A utopia de que precisamos, por definição, não pode estar em nenhum lugar deste mundo e parece-se muito com a ideia platónica do Bem.

domingo, 7 de setembro de 2008


Alcácer do Sal (José Ames)

A INVENÇÃO DO MUNDO



"Se se tomar a perspectiva cínica, a lei podia muito bem ser vista como construindo um mundo inventado que simplifica 'realidades' psicológicas, políticas, económicas e outras de modo a permitir-lhe rejeitar todo o conhecimento que ameace a validade das suas comunicações normativas."

"Niklas Luhmann's Theory of Politics and Law" (Michael King e Chris Thornhill)


O único modo de enfrentarmos a complexidade do mundo ou duma situação concreta é abstrairmo-nos de tudo o que não é pertinente em relação aos nossos motivos e à nossa capacidade de apreensão.

De facto, os nossos órgãos, tanto quanto a nossa inteligência, constroem um mundo, à escala humana, a partir do aparente caos da realidade que não é senão uma sobreposição de ordens a que não temos acesso, nem precisamos de conhecer.

Não é só o sistema legal que tem de vigiar a validade das suas "comunicações", rejeitando tudo o que não faz parte da sua primeira separação entre o legal e não-legal.

Em princípio, tudo o que põe em causa as nossas referências existenciais, se quisermos, a nossa visão essencial do mundo, é censurado ou treslido, de modo a preservar a nossa integridade.

É por isso que as verdades fora de tempo não nos transformam.

sábado, 6 de setembro de 2008


"Veneza" (José Ames)

A VERDADE NUA





Já li que há povos que têm o sexo em tudo excepto no sexo, e outros, ao contrário. Parece à primeira vista que a importância desmedida que assumiu a sexualidade no mundo ocidental condena irremediavelmente o espírito. A nossa cultura deixou de considerar o corpo como separado da alma? Tudo nos diz que o direito ao corpo é uma conquista do homem livre de preconceitos religiosos. A presença da alma está nos milhares de templos que cobrem a superfície da terra, e isso já não é possível negar. As ciências humanas explicaram os dois princípios como fenómenos da linguagem. Se o homem puder falar o sexo não compromete a parte superior, e a repressão, em vez de calcar o corpo em nome da lei, torná-lo-á um ideal obrigatório. Quem se impede de gozar e de buscar o gozo como finalidade de todos os seus esforços é uma pessoa com complexos, um escravo de ideias e preconceitos ultrapassados. A sociedade de consumo condena os monges ao asilo psiquiátrico e ao exílio da espécie. Mas é desconhecer a forma humana. Este paraíso totalitário é posto em causa pela morte e pela necessidade do pensamento e do coração.


O homem sem laços afectivos e sem deveres perante os outros e para si próprio não é nada. A grande empresa da libertação sexual e do prazer sem culpa como modelo de felicidade é um néon por cima dos países que a vida desmente a toda a hora. O que é interessante ver é a função universal do sexo e o espaço que pretende ocupar. Se o sexo é tão falado e tão visto é porque não se pode falar noutra coisa, nem acreditar noutra realidade, ao nível alimentar que é o dos mass media e da publicidade. Esta, porque quer vender e condicionar favoravelmente as tendências e a psicologia profunda, último refúgio do mito da natureza. Os outros, pelas mesmas razões, embora invocando algumas vezes preocupações mais elevadas, tal como a arte, a cultura e a informação.


Toda a ideia lisonjeira do homem redu-lo ao mais baixo para ter a maior base possível, e isso é necessário porque as emissões e os espectáculos custam dinheiro. Os cineastas que pensam na plateia podem agradar pela inteligência e pelo humor, mas não são criadores de beleza senão contra esse pensamento. O mundo oficial está dominada pelas leis do espectáculo que lhe impõem os mass media. E a política não escapa ao modelo do sexo. Quando tudo se quer dar a ver, o que mais se vê é o que se esconde. Não é difícil perceber a relação desta ideia com o funcionamento da própria sexualidade.


O hardcore é a morte do sexo, a sua negação completa. Só é possível tirar prazer disso porque a cena explícita nunca é realmente vista em si. Há um diferimento e uma construção no tempo que fazem da finalidade um ponto cego. A obscenidade dos meios de comunicação de massa resulta de ser impossível uma verdadeira relação entre os espectadores e o espectáculo humano. Por força do meio técnico e da disposição das pessoas, procura-se a linguagem e não a acção e o sentimento do que é visto e ouvido. Ora a sexualidade não é apenas um resumo da moral, é também uma forma de pensar. E todos pensamos mal diante da televisão.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008


Clépsidra (José Ames)

RETZ E OS PARTIDOS


O Cardeal de Retz (1613/1679)



“Coligni, dizia, na véspera do dia de S. Bartolomeu, que o seu sogro tinha perdido mais no partido huguenote deixando penetrar o seu desencanto, do que perdendo as batalhas de Moncontour e de Saint-Denis.”


Esta citação do Cardeal de Retz nas suas Memórias é bem verdadeira para quem entender a natureza dos partidos que é a duma crença colectiva, apesar do mundo ou contra o mundo.

A força transformadora de algumas organizações vêm-lhes menos de apreenderem a realidade melhor do que outras, do que duma coerência e dinamismo que impõem à realidade, como uma cunha. Claro que, neste caso, força não é eficácia. Por isso, quando conseguem vencer não são os ideais que vencem, mas algo de completamente distinto, que transforma os próprios partidos em procuradores da necessidade.