segunda-feira, 31 de março de 2008

O FIM DA PERSPECTIVA


http://www.senia.com/wp-content

"Com a arte moderna, já não há espectador privilegiado, a obra plástica deixa de ter que ser contemplada de um ponto de vista determinado, o observador dinamizou-se, é um ponto de referência móvel. A percepção estática exige de quem olha um percurso, uma deslocação imaginária ou real através da qual a obra é recomposta em função das referências e associações próprias do observador."

"A Era do Vazio" (Gilles Lipovetsky)


Mas não é à situação anterior à descoberta da perspectiva que se volta na pintura.

O sujeito triunfante impõe a partir do Renascimento a sua posição ao quadro. Até ali um anjo no céu podia ser maior do que uma figura do primeiro plano, os episódios da história sagrada podiam suceder-se num espaço múltiplo e sem hierarquia.

Mas a figura humana fosse ela distorcida por uma convenção, como no gótico ou no bizantino, ou obedecesse a um cânone mais realista era o limite da representação.

Este privilégio óptico foi completamente destronado pela fotografia, e é óbvio que ao ultrapassarmos os objectos e a figuração, não podemos conservar a perspectiva.

Não é coincidência se isto ocorre ao mesmo tempo que a psiquiatrização da consciência.


Lisboa (José Ames)

A VIRTUDE DOS OPRIMIDOS


Bertrand Russell (1872/1970)


"A crença na superioridade "espiritual" da mulher era parte integrante da determinação de conservá-la, tanto económica como politicamente, inferior. Quando os homens levaram a pior nessa batalha, tiveram de respeitar a mulher, e, assim, deixaram de oferecer-lhe a "reverencia" como um consolo pela sua inferioridade."

"Ensaios Impopulares" (Bertrand Russell)


Esta ilusão, de antes da mulher ter adquirido o direito de voto, faz parte da crença, sem qualquer base racional, segundo Russell, de que "certas partes da raça humana são melhores ou piores, moralmente, do que outras."

Desde os "homens puros de antanho" de Lao-Tse (referindo-se ao período anterior a Confúncio), aos pobres do Romantismo e aos Gregos quando estavam sob o domínio turco, ou aos Irlandeses, "possuidores de um encanto especial e de penetração mística, até 1921" e às crianças, que passaram de teologicamente más entre os evangélicos a inocentes, ou ao proletariado do século XIX, que essa ilusão tem variado na forma, mas persistido na sua essência.

A leitura cínica que faz o filósofo inglês, segundo a qual a idealização da vítima existe porque é útil para o opressor, não deixa espaço algum para o sentimento de injustiça e para os instintos sociais.

Mas sem eles não se compreenderia o sacrifício de muitos daqueles que lutaram contra tal opressão.

Que a idealização, mesmo para esses, fosse uma "arma" não se poderá negar.

E a razão da falência das grandes causas libertadoras talvez esteja um pouco no trabalho de sapa de algumas teorias como a psicanálise (Russell esperava ainda um Freud para mito do proletariado) que ao descrever o Inconsciente como um palco de forças instintuais, com especial relevo para a sexualidade, derrotou todas as tentativas de encontrar no homem um fundo bom ou mau.

domingo, 30 de março de 2008

PERITOS


http://www.stgmpr.com.au/


"O nome de perito, que encontramos também em campos como o trabalho, a agricultura, o alojamento e a educação, é perito num quadro institucional particular. As organizações que criámos nesses campos cresceram até uma tal complexidade que é, mais ou menos, preciso todo o tempo duma pessoa para os dominar. O perito institucional não é necessariamente uma pessoa que saiba tudo o que é preciso para o habilitar a julgar o valor da instituição, mas frequentemente ele é o único a compreender a sua organização em profundidade e que, por isso, é indispensável. As razões pelas quais ele se tornou interessado numa instituição particular e a aprova tem muitas vezes pouco a ver com quaisquer das suas qualificações como perito."

"The Constitution of Liberty" (F.A. Hayek)


O expert é, assim, uma figura indispensável para tudo quanto à organização de que ele é especialista diz respeito.

Mas, como diz Hayek, não está mais habilitado de que qualquer outra pessoa ( e normalmente estará menos, se o interesse afectar o seu juízo) para julgar do valor da organização e dos fins que serve.

Ora, os técnicos especialistas nas várias áreas são naturalmente chamados a pronunciarem-se sobre aquilo que sabem melhor do que ninguém.

Mas esse é também o melhor método para perpetuar uma escolha errada, com o inconveniente de se deixar de pensar no assunto, ao confundir-se o valor e o conhecimento.


(José Ames)

O PREÂMBULO DA LEI



"Toda a acção legislativa é educação, e a lei o seu instrumento. É assim que Platão chega à exigência (...) de não se formularem só preceitos, mas se induzirem os homens a uma acção correcta, por meio dos preâmbulos às leis."

"Paideia" (Werner Jaeger)


Que ideia é esta a que o filósofo dá o seu verdadeiro âmbito alargando a educação, pela primeira vez, a toda a população e fazendo dela, a paideia, o principal objectivo do Estado, para além da segurança?

A noção de que era possível atingir a justiça pela formação dos mais eminentes cidadãos que, como pastores, conduziriam o povo recebe aqui o seu mais claro desmentido.

A filosofia e a acção esclarecida continuam a ser exigidas dos governantes, mas estes não serão compreendidos, nem obedecidos se os princípios básicos da educação não forem transmitidos a todos os cidadãos.

Através da explicação contida nos preâmbulos, que ultrapassavam muitas vezes em extensão o corpo da lei, o Platão da velhice já não parece pensar que a linguagem dos mitos deve ser privilegiada, mas que é à razão, presente até no pequeno escravo do Menon, que o apelo deve ser feito.

Em tudo isto se desenha, sem possibilidade de erro, a diferença entre a sociedade natural e a sociedade política, orientada por um princípio superior.

A justiça só pode ser esse princípio se a cultura o conserva como ideal, erguido, como a serpente de Moisés.

quinta-feira, 27 de março de 2008


Porto (José Ames)

NARCISISMO


http://motspourmaux.perso.cegetel.net

"O indivíduo, encerrado no seu ghetto de mensagens, enfrenta doravante a sua condição mortal sem qualquer apoio "transcendente" (político, moral ou religioso). "O que verdadeiramente revolta contra a dor não é a dor em si, mas o sem-sentido da dor", dizia Nietzsche: passa-se com a morte e com a idade o mesmo que com a dor; é o seu sem-sentido contemporâneo que lhes exacerba o horror."

"A Era do Vazio" (Gilles Lipovetsky)


O sentido que hoje falta à dor e à morte é "anti-darwiniano". É uma fraqueza por que teríamos de pagar em termos de evolução, quando nos comparamos com culturas mais ricas de sentido.

Mas talvez que essa destruição de sentido e de perda de importância dos "valores superiores" seja compensada por um controlo social mais eficaz através da psicologização e daquilo a que o autor chama de narcisismo.

O sentido que a consciência e a afectividade reclamam podia ser então substituído pelo alfa e o ômega do indivíduo.

Ao mesmo tempo que se atinge o zero social, tudo o que atinge o narcisista recebe o pleno do sentido.

Neste ocaso do humanismo encontraremos na energia do cosmos as novas metáforas?

RICOCHETES



"NO - No fundo, e para você, o que é que pensar quer dizer?

S. Kakar - É pela paixão que se reconhece o pensamento. Pensar não é somente uma actividade do cérebro, mas também do estômago e do coração. Um pensamento original é uma conversação entre os três."


(Entrevista de Sudhir Kakar ao "Nouvel Observateur")


Pensamentos biliosos, pensamentos de estômago, ideias do coração. Tudo metáforas que exprimem, desde Platão, a unidade viva do que somos.

Será que o mais "puro" dos intelectuais pode pensar só com o cérebro?

É esta raiz corporal do pensamento que o designa como característico de uma pessoa.

Mas nem por sombras isso dá conta da objectividade das ideias e até da opinião.

Podemos ser tão superficiais, envolvendo-nos tão pouco naquilo que dizemos que a opinião, a moda no dizer, apenas fazem ricochete em nós. Não lhes acrescentamos nada, e por isso não se pode chamar a isso pensamento.

Às vezes somos esse ponto de ricochete e outras somos papagaios repetindo sem pensar o que ouvimos ou lemos.

É por isso que pensar verdadeiramente é algo de dinâmico como a conversa que se trava dentro de nós entre as três figuras de que fala Kakar.

Mas há um mundo das ideias, do espírito objectivo que, por exemplo, pode ser representado pela Ciência.

E talvez a Ciência não tivesse chegado onde chegou, se fosse realmente pensada, em vez de simplesmente desenvolvida numa lógica separada e unilateral.


(José Ames)

INTERMITÊNCIAS DO CORAÇÃO


O rio Letes


"Porque às perturbações da memória estão ligadas as intermitências do coração. É sem dúvida a existência do nosso corpo, semelhante para nós a um vaso onde a nossa espiritualidade estivesse encerrada, que nos induz a supor que todos os nossos bens interiores, as nossas alegrias passadas, todas as nossas dores estão perpetuamente em nossa possessão. Talvez seja inexacto crer que elas nos escapam ou nos voltam. Em todo o caso, se elas permanecem em nós, é a maior parte do tempo num domínio desconhecido onde não são de qualquer utilidade para nós, e onde mesmo as mais habituais são recalcadas por recordações de ordem diferente e que excluem toda a simultaneidade com as da consciência."

"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)


Estas reflexões são motivadas por esse outro encontro com o passado vivo (como o episódio mais conhecido da madalena ou o da laje desnivelada que o faz pensar em Veneza), quando o narrador, ao baixar-se para desapertar o primeiro botão da bota, o seu peito "se encheu de uma presença desconhecida, divina, os soluços o sacudiram, as lágrimas correram dos seus olhos". A ausência da avó atingia-o agora, realmente, apesar de já ter passado um ano sobre a sua morte.

Aquela imagem do espírito no vaso evoca em nós, imediatamente, o maravilhoso dos contos árabes e traduz, com toda a justeza, o milagre que é, contra os hábitos, o entorpecimento e todos os filtros do Letes, a ressurreição do passado. Não como algo de exterior, como espectáculo do que fomos, conservando-nos nós na galeria, certamente com um sorriso irónico e enternecido nos lábios, mas como se voltássemos à inocência da situação original.

A obra de Proust é a mais conseguida parábola da literatura sobre o Eterno Retorno.

quarta-feira, 26 de março de 2008

FÓSSEIS DO INVIÁVEL


Raymond Queneau (1903/1976)


"Não tenho qualquer respeito, nem consideração especial pelo popular, o devir, a "vida", etc. Mas precisamente como não vejo nada de realmente sagrado no nosso francês contemporâneo, não vejo já qualquer razão para não elevar a linguagem popular à dignidade da linguagem escrita, e fonte duma nova literatura, duma nova poesia. E a reforma da ortografia, ou antes a adopção duma ortografia fonética, impõe-se, porque ela tornará manifesto o essencial: a preeminência do oral sobre o escrito. Trata-se, pois, não de reforma, mas de criação."

"Bâtons, Chiffres et Lettres" (Raymond Queneau)


Vem a calhar, face ao acordo ortográfico que tantos escudos tem levantado por parte dos que melhor conhecem a língua escrita, figuras proeminentes da nossa cultura, enfim, mas que foi soberanamente ignorado pela massa. Talvez por que esta não espere escrever muito, nem ler por aí além.

A língua de todos os dias vai continuar a ser falada e a renovar-se, sem querer saber de brasileirismos impostos, porém, aceitando de bom grado os que as telenovelas da Globo popularizam.

Se existe, ou devia existir, a preeminência do oral sobre o escrito de que fala Queneau, então qualquer tentativa de uniformizar as práticas e o uso da língua parte dum grande equívoco.

E este acordo, longe de submeter uma idiossincrasia a outra, rapidamente fará parte dos fósseis das criaturas inviáveis.


Porto (José Ames)

SABER OU NÃO SABER


Nonika Galinea (Jocasta) & Atendants

"Uma série de incitações me veio do complexo de Édipo, do qual reconheci pouco a pouco a ubiquidade. A escolha, mesmo a criação do tema sinistro, sempre parecia ter sido um enigma, tal como a sua acção dilacerante sobre os espectadores do drama antigo tirado dele, assim como a essência da tragédia do destino em geral: tudo isso se explicava compreendendo que uma lei da vida psíquica tinha sido apreendida na sua plena importância afectiva. A fatalidade e o oráculo não eram mais do que a materialização da necessidade interna; o facto de que o herói pecava sem o saber e contra a sua intenção constituía a justa expressão da natureza inconsciente das suas aspirações criminosas."

"Ma vie et la Psychanalyse" (Sigmund Freud)


Ninguém fez mais por esta segunda vida dos mitos clássicos do que o criador da psicanálise.

Como diz Sudhir Kakar, os heróis do Mahabharata estão muito mais presentes, ainda hoje, na cultura dos indianos do que os heróis de Homero na nossa. Estes estão connosco como uma ou outra coluna do templo pagão se encontra prisioneira na nave cristã.

E claro que Édipo, no caso de Freud, é um sinal de quase desforra do paganismo.

Através do mito, são as caves da alma que o espeleólogo analista explora sem medo de encontrar a mais remota imagem de Deus.

Mas o preconceito religioso, como não podia deixar de ser, foi substituído por uma espécie de força oculta que é essa necessidade interna resultante do conflito entre o desejo e a Lei, reflectida na consciência e na vontade.

E o que Freud nos diz é que Jocasta teria sido desejada ( e esse desejo, evidentemente, censurado), mesmo se Édipo soubesse quem era. Se se impugnar essa premissa, o complexo cai pela base.

terça-feira, 25 de março de 2008

PRETA DE NEVE


Andy Warhol (1928/1987)


"Basta vermos certos filmes "experimentais" para disso nos convencermos: sem dúvida, sai-se do circuito comercial e da narração-representação, mas para cair na descontinuidade pela descontinuidade, no extremismo dos planos-sequência em que tudo fica imóvel, na experimentação não como pesquisa mas como procedimento. J.-M.Straub filma a perder de vista a mesma estrada monótona, A. Warhol filmara já um homem a dormir durante seis horas e meia e o Empire State Building durante oito horas, sendo a duração do filme a do tempo real."

"A Era do Vazio" (Gilles Lipovetsky)


Isto para dizer que a vanguarda morreu, ou mudou de lugar, que a revolução permanente já não se encontra na arte, mas na cultura de massa, em que "há mais experimentação, surpresa, audácia no walkman, nos jogos de vídeo, no surf, nos filmes comerciais para o grande público do que em todos os filmes de vanguarda."

A "Branca de Neve" de César Monteiro foi, entre nós, a confissão desse esgotamento.

A situação é a de um derrube de hierarquias em que tudo pode ser citado e reapropriado, como se a novidade tivesse perdido para sempre a sua inocência.

Einstein definia o génio como o talento de esconder as próprias fontes. A arte pós-moderna, pelo contrário, parece apostada em não esconder nada, numa auto-desmistificação em que o fundo e a superfície alternam como num anúncio de néon.

E é como se o inconsciente não tivesse mais álibis.


(José Ames)

DESCONFIANÇA


Thomas Jefferson (1743/1826)


"(...) um governo livre está baseado na vigilância, não na confiança, é a vigilância e não a confiança que prescreve constituições limitadas, para amarrar aqueles a quem somos obrigados a confiar o poder... a nossa constituição, de acordo com isso, fixou os limites até onde, e não mais além, a nossa confiança pode ir. Em questões de poder, assim, não se oiça mais falar em confiança no homem, mas amarre-se-lo, para que não faça mal, às correntes da Constituição."

Thomas Jefferson , "Draft of Kentucky Resolution of 1789", citado por F.A. Hayek


Esta desconfiança de princípio contra o poder dos homens, sejam eles quem forem, inspira não só o liberalismo dos fundadores da república americana, mas também o radicalismo de entre as duas guerras, em França, por exemplo, à maneira de um Émile Chartier.

Na sua base, está um pessimismo mitigado sobre a possibilidade do mais sincero dos amantes da liberdade e da felicidade do seu povo honrar os seus princípios e cumprir as suas promessas, uma vez no governo, se puder fazer tudo o que ele pensa que a nova situação exige.

Não faltam os exemplos na história desta traição anunciada, e é por isso que desconfiar sempre é o melhor remédio.

Podia-se dizer que os portugueses são dos povos que melhor seguem esta higiene da desconfiança em relação a qualquer governo.

Talvez seja verdade, mas com uma nuança de masoquismo.

segunda-feira, 24 de março de 2008

ÍTACA


http://mtestepamdi.files.wordpress.com


"Tal como o espírito, o coração forja utopias: e de todas a mais estranha é a de um universo natal, onde repousamos de nós mesmos, um universo - travesseiro cósmico de todas as nossas fadigas."

"Précis de Décomposition" (E.M. Cioran)


Cioran diz também que tudo o que não aceita a existência como tal confina à teologia, teologia sentimental "onde o Absoluto se constrói com os elementos do desejo, onde Deus é o Indeterminado elaborado pelo langor."

Mas de onde poderia vir a ideia de um universo não natal?

Podemos contestar a identificação da terra com a mãe nutridora, que nos recebe no abraço final, quanto mais não seja porque alguns usos funerários nos fazem pensar antes num abraço do ar e do fogo, mas teríamos nascido da língua, a verdadeira pátria, como diz o poeta?

Que universo é esse que não é a Ítaca para além de Ítaca? O Mediterrâneo da existência não é a prova duma travessia?



Cáceres (José Ames)

A PSICANÁLISE NA ÍNDIA




"Estes diferentes factores explicam para Kakar certos traços marcantes do psiquismo indiano, O "eu" não seria constituído de um modo tão separado, tão autónomo como o dos Ocidentais, mais precocemente desligados da sua mãe, mais depressa confrontados com os seus limites e com a sua ausência. O "superego" indiano não seria também tão severo, nem sobretudo tão interiorizado: o grupo asseguraria um controlo exterior, através da presença constante da família alargada, onde várias gerações vivem juntas, depois da jâti, a casta, com as suas ramificações complexas."

"Sudhir Kakar, Le Psychanalyste des Civilisations" par Roger-Pol Droit


Laços mais fortes com a mãe, "a relacionar com o moksha, o ideal da fusão com o cosmos" e um papel mais apagado do pai, nem modelo, nem guia. "Ele é mais um espectador do que um aliado." Esta seria uma leitura psicanalítica da Índia tradicional, os valores do Ocidente tendo grandemente modificado este cenário.

Como se vê, a psicanálise pode ainda ser útil nesta interpretação duma cultura dos antípodas. E sendo uma abordagem não sociológica da família, permite-nos pensar o que poderia ser uma físico-química do social.

A religião alia-se aqui à sexualidade para nos dar a estática do que seria próprio do Oriente.

E é claro que é menos pela influência directa das ideias do que pelos novos hábitos de consumo, na esteira da transformação económica, que entra o "Cavalo de Tróia" duma dinâmica ocidentalizante.

domingo, 23 de março de 2008

WANT TO BUY SOME ILLUSIONS


"A sua melhor missão" (1948-Billy Wilder)

Uma canção fabulosa pela Dietrich, "Want to buy some illusions?", a paisagem duma Berlim bombardeada, como nunca se viu, e uma intriga como só Wilder sabe urdir, fazem de "A foreign affair" uma comédia deliciosa.

A puritana de Iowa (Jean Arthur), que faz parte duma comissão do Congresso para avaliar o moral dos G.I. em Berlim, acaba por se deixar seduzir pelo mais corrupto dos oficiais, o capitão Pringle (John Lund).

Pelo meio, a descrição da Berlim da luta pela sobrevivência e do mercado negro, em que o preço mais alto poder ser atingido por um bolo de chocolate.


(José Ames)

O ESPAÇO DA RAZÃO


Cosmographia (1507, Martin Waldseemüller)


"Mundialização e universalidade não caminham a par, melhor diríamos que uma exclui a outra. A mundialização tem a ver com as técnicas, o mercado, o turismo, a informação. A universalidade tem a ver com os valores, os direitos do homem, as liberdades, a cultura, a democracia. A mundialização parece irreversível, dir-se-ia que o universal está em vias de extinção; pelo menos no sentido em que se constituiu como sistema de valores à escala da modernidade ocidental, sem equivalente em qualquer outra cultura. Mesmo uma cultura viva e contemporânea como a japonesa não possui nenhum termo para o designar."

"O Paroxista Indiferente" (Jean Baudrillard)


Culturas fechadas, insulares, que desconhecessem o próprio conceito de universal teriam, com a mundialização, de importar "sequências de código" da razão universal, desenvolvida pelas culturas abertas.

Mas se uma cultura tradicional e centrada em si mesma durante séculos, como a chinesa, pôde adoptar a filosofia alemã para levar a cabo a sua Revolução, não se vislumbram, em princípio, quaisquer limites à influência da cultura ocidental, a única a forjar os conceitos com o suficiente grau de abstracção e de generalidade.

Se do Oriente tudo veio, como dizia Pessoa, este é o regresso do pêndulo.

Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos,
Que tudo o que nós não somos (...)

sábado, 22 de março de 2008

A EXPERIÊNCIA ACUMULADA


Mao Tsé Tung (Andy Warhol)


"Dizem-nos: "Vocês instauraram uma ditadura." Sim, caros senhores, tendes razão. Nós instaurámos efectivamente uma ditadura. A experiência acumulada pelo povo chinês desde há dezenas de anos diz-nos que é necessário instaurar a ditadura da democracia popular. Isso quer dizer que os reaccionários devem ser privados do direito de exprimirem a sua opinião e que só o povo tem direito de voto, o direito de exprimir a sua opinião."

"A Nova Democracia" (Mao Tsé Tung)


Estas palavras, aplicadas ao caso da nação mais populosa do mundo, proferidas com a segurança de quem tem um objecto desenhado diante dos seus olhos e, adiante, a História do mundo sob a forma duma seta, parecem-se hoje com um daqueles pensamentos do Senhor Valéry de Gonçalo Tavares, que ele, se fosse instado, ilustrava com um desenho esclarecedor.

Mas foi preciso que o povo chinês, com a tal "experiência acumulada", reduzisse a nada a jactância do seu líder para a loucura se tornar aparente.


Vila do Conde (José Ames)

OS PROGRESSOS DA CIVILIZAÇÃO


Alexander Graham Bell's first telephone


"Os progressos da civilização permitem a cada um manifestar qualidades insuspeitadas ou novos vícios que os tornam mais queridos ou mais insuportáveis para os amigos. Foi assim que a descoberta de Edison permitiu a Françoise adquirir mais um defeito, que era o de se recusar, qualquer que fosse a utilidade, ou a urgência, a servir-se do telefone. Ela conseguia sempre maneira de fugir quando se lho queria ensinar, como outros no momento de serem vacinados."

"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)


Na verdade, quantos jogadores compulsivos não revelaram as consolas da Sony ou da Nintendo, quantos sedentários do sofá, a televisão, ou maníacos da velocidade, o automóvel, etc., etc.?

E sem dúvida que outras qualidades ou outros vícios como o de puxar da espada por uma bagatela ou de deixar as velas acesas, com risco de pegar fogo aos cortinados, não têm hoje ensejo de se manifestar.

A atitude de Françoise parece-se muito com o que nas empresas, quando surgiram os computadores, se chamava de "resistência à mudança".

Mas as coisas correm tão depressa (para além da opinião castigar os mais morosos), que suponho que hoje a velha doméstica de Marcel andaria com um telemóvel no bolso do avental.

sexta-feira, 21 de março de 2008

O PENSAMENTO E A PARTÍCULA


E.M. Cioran (1911/1995)

"Os nossos reflexos e o nosso orgulho transformam em planeta a partícula de carne e de consciência que nós somos. Se tivéssemos o sentido justo da nossa posição no mundo, se comparar fosse inseparável do viver, a revelação da nossa ínfima presença esmagar-nos-ia. Mas viver é tornarmo-nos cegos para as nossas próprias dimensões."

"Précis de Décomposition" (E. M. Cioran)


Não podemos dizer que haja um sentido na Natureza fora de nós mesmos, sentido sem o qual, no entanto, a Natureza não chegaria aos seus fins, quaisquer que eles sejam.

Se a razão, abusando da sua capacidade de comparar, nos atrofiasse com o peso do que nos ultrapassa infinitamente, atraiçoaria, de facto, o homem.

É ela que nos tem de tirar desse beco sem saída, mostrando, em primeiro lugar, que aquilo que se compara não é da mesma natureza.

Quem sente o universo e mede o chão debaixo dos seus pés não é um corpo entre outros corpos no espaço.


(José Ames)

A CASA DAS MÁQUINAS



"(...) O Estado é uma máquina feita para oprimir uma classe por outra, para manter submetidas a uma classe outras classes subjugadas. A forma desta máquina pode ser diferente. No Estado esclavagista, temos a monarquia, a república aristocrática ou mesmo a república democrática. Na realidade, as formas do governo eram extremamente variadas, mas o fundo das coisas permanecia o mesmo."

"O Estado e a Revolução" (Lenine)


O que é que a certa altura na história das ideias simplificou assim a Natureza, que para Hegel era ainda tudo o que se opunha ao pensamento, a ponto de Lenine poder aplicar à sociedade política a metáfora mecânica?

A História, como interpretação do passado, nunca pôde dispensar uma teoria da leitura, mas, no caso de se suporem leis para o seu desenvolvimento, a interpretação aproxima-se muito da dedução lógica.

É o historicismo que fornece a ideia da máquina e da sua finalidade. "Feita para oprimir", diz Oulianov. Como a ideia da máquina não deixa lugar para qualquer outra função do Estado, suprimidas as classes, abre-se o caminho salvífico.

A Natureza não é já o objecto de conquista do capitalismo primitivo. Ela torna-se o livro da História. Nas suas páginas conta-se a versão laica da Salvação.

Apetece citar Cioran: "Quando trazemos em nós germes de decepções e como que uma sede de as ver eclodir, o desejo que o mundo infirme a cada passo as nossas esperanças multiplica as verificações voluptuosas do mal." ("Précis de Décomposition")

quinta-feira, 20 de março de 2008

O HOMEM DO SUL



"The Southerner" (1945-Jean Renoir) podia resumir-se como uma parábola da fé. O milagre que a coragem na atitude dos que nos estão mais próximos opera na nossa alma.

Desde que Sam Tucker (Zachary Sccott) recolhe as palavras do tio moribundo no campo de algodão, decide tornar-se agricultor por conta própria.

A casa desconjuntada que alugou, o poço imprestável, o terreno cheio de pedras e de mato e, para culminar, a resmunguice duma sogra fatalista (Beulah Bondi, figura renoiriana como a velha da "Partie de campagne") quase que o levam ao desespero. Mas a mulher (Betty Field) já arranjou o fogão e prepara o primeiro café.

Depois vem a "febre da primavera" do filho, por falta de leite. Um amigo empresta-lhe o dinheiro para comprar uma vaca.

O casal, ombro com ombro, arrancou à terra uma boa colheita de algodão. Mas a prova mais dura chega com uma noite de temporal. Tudo se perde e a vaca anda à deriva na cheia. Sam baixa os braços e diz ao amigo que está pronto a aceitar um emprego na fábrica.

Mas a mulher não está abatida. Já tem o lume aceso e o café a ferver. Até a velha ajuda à missa, lembrando outras tempestades e como foram vencidas.

Sam volta a acreditar na terra e no trabalho.


Porto (José Ames)

UNIVERSIDADE


http://www.rics.org/NR/rdonlyres/


No "Público" de ontem, Rui Tavares escreve sobre as "Capacidades desperdiçadas" e cita um artigo do Chronicle of Higher Education. "(...) um "caçador de cabeças" explicava como não lhe interessava saber se a pessoa que procurava vinha de Gestão, Filosofia ou Física, mas antes saber se ela tinha adquirido as capacidades de raciocínio, disciplina mental, criatividade ou autonomia pretendidas. A conclusão de uma licenciatura ou, melhor ainda, de um mestrado ou doutoramento em qualquer área (e sublinhe-se este "em qualquer área") era um indício forte dessas capacidades. Para muitos trabalhos, a informação pragmática a dominar acaba por ser dada in loco e de forma relativamente rápida - mas as capacidades que já se trazem é que são inestimáveis."

Assim a educação pensada em função do mercado é um mito. Nunca a universidade poderá corresponder ao que o mercado espera dela. "Um curso demora anos a fazer e redireccionar a universidade para os cursos que o mercado deseja demora mais ainda. E nem sempre compensa, porque o mercado entretanto já mudou de ideias."

Por outro lado, a "capacidade de raciocínio, a disciplina mental, a criatividade ou a autonomia", que são a verdadeira chave do sucesso na maior parte das profissões, talvez sejam incompatíveis com uma mentalidade "especializada". Isto é tanto mais verdade, quanto mais rápida tiver de ser a adaptação às mudanças verificadas no ambiente económico e empresarial.

É isto que dá à ideia da universidade um novo fôlego, com a sua missão de formar o homem, não enquanto profissional apenas, mas o homem que sabe pensar e resolver problemas. E sabe-se pensar sem uma verdadeira cultura?

Mas aquilo que fará o sucesso na profissão e na vida deve ter sido preparado e desenvolvido desde muito cedo, cultivando o autodomínio físico e mental e o valor do esforço.

quarta-feira, 19 de março de 2008

A CULTURA COOL


http://www.gadgetvenue.com/wp-content/

"A libertação sexual, o feminismo, a pornografia trabalham para um mesmo fim: erguer barreiras contra as emoções e manter afastadas as intensidades afectivas. Fim da cultura sentimental, fim do happy end, fim do melodrama e emergência de uma cultura cool onde cada um vive no seu bunker de indiferença ao abrigo das suas paixões e das dos outros."

"A Era do Vazio" (Gilles Lipovetsky)


Barreiras erguidas pelo mesmo método seguido pela publicidade e pela televisão para nos embotar a sensibilidade e proteger de certos limiares críticos de responsabilidade e solidariedade.

Através da usura das imagens e das palavras, pela homogeneização de todos os conteúdos. A produção mediática, ao banalizar a violência, ensina-nos a "poupar" as nossas emoções. Só se sai da apatia com doses cada vez maiores daquilo a que os Americanos chamam de exciting.

A invasão do nosso imaginário e a destruição das palavras (pelos raids da publicidade e de outros media sobre a poesia e a literatura) tornam os nossos sentimentos afásicos e reféns da cultura de massas.



(José Ames)

A HISTÓRIA CANIBAL


Pierre Vergniaud (1753/1793)

"(...) ele (Vergniaud) veio àquelas bancadas desertas onde parecia pairar a morte. Aguentou pacientemente, artigo por artigo, a leitura, a votação do terrível projecto de Lindet. E apenas teve estas palavras: "Peço a chamada nominal; importa conhecer os que nomeiam constantemente a liberdade para a aniquiliar."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)


A Convenção acabava de aprovar a criação do Tribunal Revolucionário, no meio das maiores incertezas quanto ao futuro da pátria e com a imagem das matanças de Setembro diante dos olhos de todos.

Vergniaud compara o tribunal à inquisição, ainda "pior do que a de Veneza". "Nenhuma forma de instrução. Nenhuns jurados. Todos os meios admitidos para formar a convicção.", diz o historiador. O projecto fala em perseguir "não apenas os que prevaricaram nas suas funções, mas também os que as abandonam ou as negligenciam; os que, pelo seu comportamento, as suas palavras ou os seus escritos, poderiam induzir o povo em erro; os que, pelos seus antigos cargos, lembram prerrogativas usurpadas pelos déspotas."

Há quem ache que deveria haver jurados, mas "eles que opinem em voz alta". Michelet acrescenta: "O Terror estava mais nestas palavras do que em qualquer outro projecto."

O que Vergniaud e os seus amigos temiam cumpriu-se. Os fundadores da República foram as primeiras vítimas do Tribunal e os outros revolucionários iriam seguí-los.

A sua inteligência é tanto mais admirável quanto o passado, mesmo o da decadência dos Romanos, não lhes podia proporcionar um antecedente do terror sistemático.

Só a crença no Absolutismo da razão (ignorante ainda das antinomias kantianas) poderia produzir um instrumento como o Tribunal, mais próximo dos ordálios medievais do que de qualquer espécie de Direito.

As revoluções filhas da de 1789 só aproveitaram da sua lição em terem sabido gerar um poder sobre a anarquia das paixões violentas e quase sempre generosas.

Mas a grelha da luta de classes aplicada por Marx à sua leitura da história não impediu que a Revolução se devorasse a si mesma.

terça-feira, 18 de março de 2008

A SOLIDÃO DO CORREDOR DE FUNDO


"The loneliness of the long distance runner"
(1962-Tony Richardson)

Colin Smith (Tom Courtenay) não é um vadio. Mas não quer trabalhar, para nenhum patrão ter lucro à sua custa.

Tendo por desfastio assaltado uma padaria, é preso e na prisão especial para jovens delinquentes descobrem-lhe o talento de corredor de fundo. Logo o director (Michael Redgrave) se pretende servir dele para ganhar o campeonato para o seu estabelecimento.

Mas nos momentos finais da corrida, quando tudo parecia ganho, Colin é assaltado por todas as razões que continua a ter para ser uma ovelha ronhosa e deixa-se ultrapassar pelo concorrente (um James Fox quase adolescente). Com isso decepciona mortalmente o director, mas regressa ao conforto da igualdade com os outros reclusos, engrandecido aos seus próprios olhos.

Tom Courtenay é excelente, como sempre. O retrato da família operária que nos dá Tony Richardson é enxuto e vigoroso.

Só o final, sem dúvida o momento crítico do filme, me parece prejudicado pelo disparo de flashbacks. Psicologicamente, também não seria esse o momento de decidir.


Porto (José Ames)

A VIA MISTERIOSA



"A noção de mistério é legítima quando o uso mais lógico, mais rigoroso da inteligência conduz a um impasse, a uma contradição que não se pode evitar, neste sentido em que a supressão dum termo torna o outro vazio de sentido, que colocar um termo obriga a colocar o outro. Então a noção de mistério, como uma alavanca, transporta o pensamento para o outro lado do impasse, para o outro lado da porta impossível de abrir, para lá do domínio da inteligência, acima dele. Mas, para atingir o que está para além do domínio da inteligência, é preciso atravessá-lo até o fim, e atravessá-lo segundo um caminho traçado com um rigor irrepreensível. Doutra maneira, não se está além, mas aquém."

"La Connaissance Surnaturelle" (Simone Weil)


Há, evidentemente, uma diferença entre o que não pode ser compreendido pela inteligência por limitação desta (seria o caso de fazermos parte de um plano duma inteligência superior, não necessariamente divina) ou por uma irremediável falta de elementos (como se compreenderia a actualidade se toda a memória de um qualquer século se perdesse?) e uma problemática.

Tudo o que é passível de vir a ser compreendido, por via de qualquer descoberta ou de novas informações é um problema.

O mistério de que fala Simone é outra coisa, em primeiro lugar porque ela supõe a transcendência. Mas o uso de metáforas oriundas da mecânica e da física (alavanca, energia) é indício de que o mistério não é sinónimo de impotência.

Como alguns físicos dizem hoje da teoria quântica, não é o facto de não a compreendermos que a torna menos eficaz.

A noção de transcendência talvez fosse fatal para a Ciência, tal como a compreendemos hoje. Devemos, porém, estar conscientes de que existe uma dimensão da realidade muito para além do que pode chegar a ser definido como um problema.

segunda-feira, 17 de março de 2008

A CORAGEM DE UM GRANDE ACTOR


"Victim" (1961 - Basil Dearden)

Não precisava de ver este filme ("Victim") para me render ao talento de Dirk Bogarde. Ele, de facto, torna esta denúncia dos esquemas de chantagem que a lei contra a homossexualidade (só revogada em 1967) favorecia, em verdade psicológica e em exemplo moral.

O jovem Barrett não pode mais aguentar a pressão dos chantagistas. Preso na sequência duma série de roubos e não querendo comprometer o homem que ama, o advogado Farr (Bogarde), enforca-se na cela.

Farr, que se tinha tentado livrar dessa ligação, joga uma carreira auspiciosa e o seu casamento na tentativa de levar à captura dos extorsionários.

O diálogo do advogado com a mulher, Laura (Sylvia Syms), em que tudo se revela e o amor é posto à prova, é extraordinário. Farr quer expor-se sozinho às humilhações que a publicidade do caso lhe vai trazer, mas o perdão de Laura espera-o no fim.

Escassos 50 anos depois, este retrato dum país que já tinha reduzido ao opróbrio um dos seus maiores escritores choca pela revolução dos costumes entretanto verificada.


(José Ames)

A CIÊNCIA NÃO PENSA



"Muitas vezes se glosou a afirmação de Heidegger segundo a qual "a ciência não pensa", tão ocupada que está em contar, medir ou manipular. Bem ingénuo seria o filósofo que se julgasse por isso engrandecido, ele que não sabe contar nem medir, e que tão desajeitado é! (...) Não, explica Heidegger, a ciência tem "qualquer coisa a ver com o pensamento" e este faria mal em ignorá-la, como perderia em desprezar a poesia."

"Le Penseur, L'Écrivain et le Philosophe" par Jean-Michel Besnier


Sem a poesia, que se abre ao domínio do corpo e do pré-conceptual, a filosofia corre o risco de se cingir à lógica. E a lógica é independente do mundo. É como se batêssemos no sino e nos ouvíssemos a nós mesmos dentro dele.

A ciência faz entrar o mundo e obriga aos desenvolvimentos lógicos, mantendo a filosofia afastada da literatura.

Mas há talvez um momento crítico em que o sistema da Ciência absorve o mundo e se torna independente dele.

Daí a actualidade cada vez maior da metafísica, que é uma tentativa de superar a lógica.

"Certamente que o pensamento é frágil, e Heidegger enumera as quatro razões seguintes:

"1º Não conduz a um saber como o das ciências;

2º Não traz uma sabedoria útil à condução da vida;

3º Não resolve nenhum enigma do mundo;

4º Não granjeia imediatamente forças para a acção." (ibidem)

Assim, para Heidegger, a filosofia caracteriza-se por um saber sem valor prático, nem heurístico. Significativamente, admite que possa inspirar a acção. Mas trata-se de um princípio de acção que nada deve à utilidade, nem à sabedoria. E aqui se reconhece a sua dívida para com Nietzsche.

domingo, 16 de março de 2008

ESTE PAÍS NÃO É PARA VELHOS


"Este país não é para velhos"
(2007-Joel and Ethan Coen)


Fica-se pregado à cadeira, como num Hitchcock, neste filme dos Coen. Mas não há nenhum génio brincalhão por detrás desta permanente tensão gerada pela violência.

Perguntamo-nos se é realmente necessária essa tensão, se há mais do que complacência ao mostrar os procedimentos dum psicopata.

Mas o contraste entre o tempo do velho sherife (Tommy Lee Jones), o seu ritmo de pensamento e a hiperrealidade da violência, deste país que "nunca foi bom para os seus", personificada por Anton Chigurh (Javier Bardem), um assassino com queda para a metafísica (como o de "Seven"), talvez dependa disso.

Chigurh é uma espécie de franchising do destino, depois da morte de Deus. Tem também a sua marca que é a de arrombar as fechaduras por sucção.

Com o seu jogo de "cara ou coroa", em que a aposta é total, ele torna-se um simples executor do acaso. A mortandade com que começa o filme e a mala abandonada cheia de dólares confrontam-nos com o carácter terrível da ausência de motivo.

Antes de se reformar, o velho experimenta ainda por um momento a imersão no perigo, de eficácia puramente interior. De facto, ele já não acredita que se possa parar a loucura do mundo.

Como o revela o seu sonho, já não há lugar, na invernia, onde o pai nos espere com o fogo protector.

Há uma elipse incongruente neste filme que não deixa de ter a sua eficácia. O herói (Josh Brolin), com mais créditos para fazer alguma justiça, desaparece da história como se só estivesse na nossa cabeça...


Lisboa (José Ames)

RELAÇÃO DE FORÇAS




Discute-se, nesta prova de força entre o ministério e os sindicatos dos professores, se um governo democrático podia, de facto, mesmo pelas melhores razões ( se uma verdadeira reforma do ensino pudesse sair das medidas anunciadas), deixar de ter em conta os protestos de toda uma classe e não abdicar da sua política, em favor duma maior contemporização com o status quo.

Isto parece evidente, já que só um regime autoritário se pode permitir ouvir-se só a ele próprio.

Numa democracia, não haveria, assim, em última análise, tal coisa como o interesse nacional ou o bem da nação (sempre passíveis duma interpretação discutível e, de resto, conotados com um regime de má fama).

Mesmo uma política explicitamente sufragada em eleições ( se os candidatos caíssem nessa ingenuidade) não podia senão adaptar-se ou submeter-se ao livre jogo dos agentes democráticos, realmente, à relação de forças.

Isto seria do mais democrático que podia ser, se o modelo supremo da democracia fosse o mercado. Mas esta ordem espontânea nem sequer pode funcionar para a economia sem uma acção reguladora do Estado e a prevalência das normas legais.

E há quem defenda que a prática de monopólio por parte duma empresa deve ser contrariada pela lei. Portanto, mesmo no mercado, a força "espontânea" pode não ser legítima. Por que, então, não seria a democracia desvirtuada por qualquer tipo de monopólio ou pela simples relação de forças?

A verdade é que a palavra não faz a coisa. À nossa democracia faltam ainda certos equilíbrios e certas defesas para que algo como o interesse comum possa prevalecer.

As deformações, muitas delas resultantes de legislação especial para favorecer este ou aquele grupo, são tão grandes que não se lhes pode dar a volta sem mais legislação especial no sentido contrário. E isso, embora contra a vocação do estado democrático, talvez não possa ser evitado.

sexta-feira, 14 de março de 2008


(José Ames)

quinta-feira, 13 de março de 2008

A GALERIA DOS ESPELHOS


"Ludwig" (1972-Luchino Visconti)

Sua alteza imperial a princesa Elisabeth ri-se da sala dos espelhos de Neuschweinstein. Ela inspecciona a última loucura de Luís II. O rei sonhava, mas os seus sonhos podiam percorrer-se como uma galeria. As ideias extravagantes dessa cabeça sobre arminho tinham a força suficiente para arruinar as finanças do país e fazer trabalhar uma legião de pedreiros e artistas nos seus palácios. Este sonâmbulo mandava, e as suas ordens eram obedecidas.

O sangue corrompido habitava a crença colectiva como um reduto contra o mundo. A única cólera que o saberia inspirar como ideia política vinha de lhe falarem em abdicação e de todo o acto de lesa-majestade. A pessoa de Luís II quis ser o rei da Baviera, e toda uma nação assistiu e deu poder à sua paixão. Mas a velha Alemanha agoniza com o seu monarca. Se o rei recusa o mundo e tenta alcançar a personalidade que lhe é negada pela função, essa atitude torna-se um problema nacional. O ceptro continua a ser eficaz, mas não perante ele próprio. A época romântica e a ideia política da nação alemã já julgaram este pobre Hoenzollern que duvida de si e de todos.

A produção monumental visa estabelecer a actualidade do poder contestado. Assegura o equilíbrio duma mente constantemente em perigo pela dúvida e as reivindicações do indivíduo. O crime de lesa-majestade é insuportável porque é uma urdidura interior do cepticismo. A uma função sem grandeza e sem futuro, Luís II opõe o prestígio da arte. Obsessivamente, procura uma atmosfera em que o sublime da poesia e da música, a dinastia eterna da beleza, expulsem para fora das paredes do palácio, para além dos jardins a mediocridade do moderno e todas as ameaças do espírito prático. Só a arte lhe dá um simulacro de existência, e então é possível recriar a natureza.

Luís II torna-se cada vez mais selvagem. Abandonado pelo seu tempo e metida a ridículo a prova dos seus palácios, ele vai cair, vai deixar-se cair esgotado e vazio. Momento dramático é aquele em que já não se sente em estado de receber a visita de Elisabeth. Por que se ri dos seus espelhos? Porque é uma mulher saudável? Ela não deixaria de julgar o fracasso dos seus ideais e de penetrar os novos e antigos vícios. O rei, porém, vai aproveitar esta recusa para viver a cena do amor-morte de Tristão. A amante impossível é invocada na dor real de si próprio. A literatura fornece um sentido trágico a uma tragédia sem sentido.

Visconti demora o olhar sobre as coisas, apenas os movimentos da paixão quebram este ritmo elanguescente, como se o rei perdesse sangue.