Trinta anos depois, volto ao circo com uma criança. As pessoas perguntam-me se ela se riu ou se ficou de boca aberta. Querem que o espectáculo se transforme em vocábulos e em manifestação de prazer. Durante os números, a voz adulta não cessou de comentar e nomear, mas é evidente que a criança não sai da sensação. Esta experiência, necessariamente sem ordem, será a cor do tempo e do prazer futuro.
A televisão fez do circo uma espécie de reserva do real. A moda ecológica pode matar a sede nesta fonte. O homem sentado pode julgar o equilibrista que três vezes nesse mesmo dia parece brincar no arame. Não contente em atravessar a pista a vinte metros de altura, ele simula aquilo que mais teme no público: o seu pânico. E pelo riso, a tensão da bancada deixa de ameaçar. Não tira que este ginasta arrisque mais do que qualquer outro sem receber os louvores do estádio olímpico. As crianças imitam as palmas dos adultos dirigidas para o homem lá em cima, mas só os pais sabem que é difícil. Adivinha-se o regime destes atletas e a estranha comunidade das roulottes. O jogo, quanto mais difícil e estático, mais precisa do microfone. A atenção do público meio selvagem não passa sem o comentário superlativo do mestre de cerimónias, vestido de fraque como convém. Mas é também para acordar o juízo que deixa passar a proeza que essa voz se faz ouvir.
O mundo maravilhoso é um mundo de trabalho. Tudo se paga com o corpo, e a vontade indomável é o único milagre. A criança aceita tudo e acredita em tudo. Mesmo no leão e no elefante. Estes animais extraordinários quase só se vêem no circo e respondem ao chicote como os escravos. É porque doutra maneira não se obtém o seu concurso, e isso diz tudo da arte do domador que com uma mão bate e com a outra alimenta e acaricia. O narrador aqui intervém para fazer falar a fera e explicar porque é que o último leão não quis obedecer ao som do látego. Ele quer bons modos para voltar à jaula. Como pedagogia não há melhor. É Daniel na cova dos leões. A tromba do elefante é um número só por si. O inevitável duche do falso espectador que se oferece para fazer a barba é uma maneira de dizer, porque o simpático paquiderme, graças à sua tromba que tem a agilidade dum braço e a eloquência da saliva, sabe fazer-se entender. Mas a evolução das espécies e o jardim zoológico passaram por nós, enquanto que para este olhar sem memória que é do povo infantil o sonho e a realidade se confundem necessariamente.
Percebe-se que o espectáculo é feito para ambas as idades e que o homem vê no rosto da criança a religião primitiva e a origem das ideias ingénuas. O circo tem a nobreza dos pobres que é a de ganhar pelo esforço e pela coragem o direito ao fato de lantejoulas. E este público quer coisas impossíveis, como passear com um guarda-chuva no arame e saltar o arco de fogo. Não se pode mentir a quem pede tanto e ignora tudo do trabalho e das leis da física. É um mundo do desenho animado construído pela paciência e o sentido da pureza. Por isso o espírito mais exigente encontra aí um objecto digno de admiração. Vejo o palhaço regressar, no fim do espectáculo, à sua roulotte, cabisbaixo e mal-humorado.
O apresentador disse que não podia faltar ao circo o número dos palhaços e disse bem. Este mascarado que fala e dá cambalhotas vem além do resto. Os mais pequenos não riem do jogo de disparates e o palhaço não tem a verdadeira homenagem.
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