O rio Letes
"Porque às perturbações da memória estão ligadas as intermitências do coração. É sem dúvida a existência do nosso corpo, semelhante para nós a um vaso onde a nossa espiritualidade estivesse encerrada, que nos induz a supor que todos os nossos bens interiores, as nossas alegrias passadas, todas as nossas dores estão perpetuamente em nossa possessão. Talvez seja inexacto crer que elas nos escapam ou nos voltam. Em todo o caso, se elas permanecem em nós, é a maior parte do tempo num domínio desconhecido onde não são de qualquer utilidade para nós, e onde mesmo as mais habituais são recalcadas por recordações de ordem diferente e que excluem toda a simultaneidade com as da consciência."
"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)
Estas reflexões são motivadas por esse outro encontro com o passado vivo (como o episódio mais conhecido da madalena ou o da laje desnivelada que o faz pensar em Veneza), quando o narrador, ao baixar-se para desapertar o primeiro botão da bota, o seu peito "se encheu de uma presença desconhecida, divina, os soluços o sacudiram, as lágrimas correram dos seus olhos". A ausência da avó atingia-o agora, realmente, apesar de já ter passado um ano sobre a sua morte.
Aquela imagem do espírito no vaso evoca em nós, imediatamente, o maravilhoso dos contos árabes e traduz, com toda a justeza, o milagre que é, contra os hábitos, o entorpecimento e todos os filtros do Letes, a ressurreição do passado. Não como algo de exterior, como espectáculo do que fomos, conservando-nos nós na galeria, certamente com um sorriso irónico e enternecido nos lábios, mas como se voltássemos à inocência da situação original.
A obra de Proust é a mais conseguida parábola da literatura sobre o Eterno Retorno.
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