sábado, 13 de setembro de 2008

ENCONTRO COM O CENTAURO




"De repente o meu cavalo empinou; tinha ouvido um ruído singular, foi a custo que o dominei e que consegui não ser lançado por terra, depois levantei para o ponto de onde parecia vir o ruído os meus olhos cheios de lágrimas, e vi a uma cinquentena de metros por cima de mim, contra o sol, entre duas grandes asas de aço cintilante que o levavam, um ser cuja figura pouco distinta me pareceu semelhante a um homem. Fiquei tão emocionado como podia ter ficado um Grego que visse pela primeira vez um semideus."

"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)


Esta descrição por Proust da visão de um aeroplano, objecto ainda raro na altura, não é apenas a do espanto que provocaria o encontro com um centauro.

A emoção irrompe na narrativa criando um outro híbrido, não mitológico este, que anuncia o futuro do narrador e o fim da obra. Todos os pormenores, desde as lágrimas ao movimento do cavalo, são significativos e nenhum se compreenderia sem todas as dimensões do tempo reunidas.

Agostinelli, o muito amado secretário de Proust tinha desaparecido, ao largo das Antibes, em 1914, num desastre de avião. E Albertine, o avatar de Agostinelli no romance, irá morrer dois volumes à frente duma queda do cavalo.

A célebre evocação da taça de chá e da "madeleine", lâmpada de Aladino de onde sai Combrai, Guermantes e tudo o resto, tem neste episódio do passeio solitário pelas falésias o seu ponto de retorno (o génio volta à lâmpada).

Depois da morte da avó (na realidade, da mãe), a morte do amor.

A ampulheta pode ser virada.

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