Roland Emmerich tem tido uma carreira
de sucesso, em Hollywood, com alguns "blockbusters" como
"Independence Day" ou "2012".
Agora, num registo diferente,
surpreendeu-nos com "Anonymous", um filme que explora o enigma de
Shakespeare. Como pôde esse homem escrever o que a tradição diz que escreveu?
O vigor da encenação, a sua
espectacularidade, a ampla utilização da técnica digital na reconstrução da
época, não nos devem impedir de reconhecer que a tese de que Shakespeare é um
impostor é brilhantemente defendida, para não falar dos actores ingleses de
quem já esperamos só a quase perfeição.
Edward de Vere, 17o. Conde de Essex,
terá sido o autor das 37 peças e dos sonetos atribuídos ao bardo inglês. Tinha
tudo para isso: conhecimento da história e da cultura clássica e, sobretudo, o
estudo, pela convivência da corte, dos originais que terão servido de modelo à
impressionante galeria de personagens do teatro shakespeareano.
Por outro lado, e aqui Emmerich
esquece todas as provas documentais, incluído o testemunho do próprio Ben
Johson, para tratar o pobre Will Shakespeare com a maior desenvoltura, como
praticamente analfabeto e presa duma cupidez sem limites (curiosamente, no caso
da construção do Globo, para bem do teatro). É o homem que se pode
"extrair" do célebre testamento da cama de casal e dum fim de vida
dedicado ao negócio de cereais. Mas aqui podemos comparar o seu caso com o de
Rimbaud que, depois de escrever a mais luminosa das poesias, foi acabar como
traficante na Abissínia.
Há um outro problema que resiste à
interpretação de Emmerich. É evidente que De Vere não partilhava do preconceito
de classe contra a actividade de dramaturgo. Por que é que foi fiel, mesmo na
hora da morte, ao segredo da sua vida, como se a ordem da rainha pudesse ser a
causa suficiente?
Acrescentemos ainda a incompreensível
observância, por parte de Ben Johnson, da promessa feita ao moribundo de manter
para a posteridade a ficção shakespeareana. Era mais do que "natural"
que fizesse como Max Brod, ao salvar da destruição a obra de Kafka.
Para terminar, há o facto de todas
aquelas peças revelarem um conhecimento
profundo do teatro, coisa que não está ao alcance dum amador, mesmo de génio, e
poderá estar ao alcance dum actor experimentado como Will.
Admitamos que a tese não é
"puxada pelos cabelos", havendo tanta coisa para esclarecer. Não
deixamos de ficar com um amargo de boca, por causa da influência duma obra tão
eficaz que se preocupa tão pouco com a verdade.
Será este um outro caso Salieri, como
o da peça de Schaffer?
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