"Kagemusha" (1980-Akira Kurosawa)
Se, de certo modo, Kagemusha não pode ser analisado, é porque o tema do duplo é nele central. Vemos claramente como esse tema decompõe a história sob a lei do simbólico. A “sombra” sentada no alto da colina recupera a bravura do filho legítimo. Como o significante, esse impostor detrás da efígie do senhor da guerra torna todas as acções individuais impossíveis. A sua legenda de “a montanha imóvel” une num mesmo campo de leitura as forças do clã Takeda. O chefe morto é um nome que um pobre diabo incarna até se confundir com ele.
Kurosawa parece querer dizer-nos que o poder é uma metamorfose criada pelo espírito de todos. O verdadeiro Shingui retira-se do seu hieratismo para a individualidade – e ao fazê-lo perde já qualidades, como se percebe pela repreensão do velho que lhe traz notícias do cerco. O seu substituto nos deveres do Estado é menos que um corpo sem fala, como um Shuingui distraído, ele é uma espécie de hieróglifo. A aparência reduzida a uma pose imóvel e aos traços dum rosto impassível é letra original do clã.
A vontade do guerreiro exercida para além da morte funciona com a literalidade dum pacto de governo e dum testamento. É esse vínculo à legitimidade do chefe clânico que torna possível a representação do duplo e que lhe marca um termo. A farsa é contestada por uma criança; insensível à religião do poder e à leitura política, a criança julga a aparência nua. Depois é o animal indomável que atira à poeira o falso dono. Corpo do centauro militar, o cavalo revela-nos a densidade da existência. E a abstracção do poder vivida pelos homens ganha assim a realidade individual e concreta. O senhor não é apenas a face e o gesto, porque toda a natureza denuncia essa falta de raízes humanas. O duplo não pode enganar as mulheres ao expor o corpo. É preciso a partir dessa altura – como se o feminino fosse incompatível com a lealdade à ficção do duplo – pôr fim ao jogo político e celebrar o luto adiado por esses três anos.
Despedido como um cão, mas já sem alma própria, como se as cerimónias e o culto do senhor feito na sua pessoa lhe tivessem comunicado os direitos do morto e o seu espírito; e sobretudo depois da sagração no campo de batalha pela morte da juventude que protegia a figura emblemática, sem ignorar o “conteúdo”, apedrejado pelos soldados que se vingam assim de terem sido ludibriados por uma sombra, o ladrão da realeza percorre o campo de batalha onde o filho de Shingui, para escapar à lei paterna, vai conduzir o exército orgulhoso de outrora ao extermínio. Cioso de criar novos símbolos e de se distinguir em tudo do grande guerreiro, levou a montanha a mover-se, contrariando a letra e o espírito da herança. Os inimigos compreenderam que o clã Takeda estava próximo do fim. Testemunha do desastre, a sombra do guerreiro dissolve-se no lago Suwa com o seu cadáver.
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