sábado, 17 de fevereiro de 2007

SEMPRE ARGAN


"Le malade imaginaire" de Molière

Confinado à cama por causa dum resfriado, todos os compromissos se desligam. Tudo cessa. Compreende-se que eu seja liberto de tal tarefa urgente. A minha liberdade diminui, retrai-se o meu corpo e a minha vontade. Todas as minhas relações deixam de interpretar os meus actos do modo habitual, e eu nesta carapaça que é o corpo doente tenho tempo e cabeça para pensar na vida.

Mas é preciso antes disso vencer a culpa que se deita connosco. Por muito que a sociedade tenha evoluído, continua a ser o trabalho a fonte principal dos direitos. A baixa não pode livrar-se da suspeita de ser uma coisa imoral. Levados por essa lógica paranóica, gostaríamos de apresentar os estigmas da doença, senão mesmo de deixar ficar o cadáver como prova.

O termómetro funciona como um criador de evidência e de decisão. Não há como o traço de mercúrio na zona perigosa para vencer os escrúpulos. O estado maligno convertido num número! É quanto basta para dizermos a nós mesmos: hoje não vou trabalhar.

A consternação do chefe ao telefone, o tom fúnebre com que todos recebem a notícia, quase reclamam a autenticidade. Depois desse efeito de simpatia, sinto-me na disposição de sofrer o mínimo conveniente.

Depois a família aquece. Protecções antigas desvelam-se ao lado das ressurgências da autoridade pré-crítica. O doente entrega-se a esse papel submisso, com uma óbvia desculpabilização. Os outros são obrigados a responder ao interesse do doente, mesmo que seja imaginário e os actos meramente simbólicos.

Preferimos jogar em todos os tabuleiros quando se trata da saúde. Apesar da prevenção que tenho contra as drogas, não deixo de submeter o organismo a estas deflagrações químicas para me curar mais depressa, ou só para obter um resultado mais seguro.

Assim, nunca sabemos se a saúde volta com o tempo, ou com os métodos tradicionais, ditos suaves, ou se é antes pelos milagres da ciência farmacêutica. Mas a verdade é que curar uma gripe à boa maneira dos antepassados é um luxo a que poucos se podem permitir. Reconheça-se, todavia, que em muitos outros casos é a impaciência e o medo que levam as pessoas a preferir o tratamento pesado.

Metido debaixo duma montanha de cobertores, suo as estopinhas. Diz-se que isso é expulsar a gripe. Mas tudo é magia como este pavor da febre e o seu exorcismo. A causa invisível acaba por não existir. Como se déssemos ordem às forças anti-infecciosas que trabalham no nosso organismo para fazer outra coisa.

O que eu não sou capaz de fazer para me voltar a pôr de pé!...

1 comentários:

bettips disse...

Avinhe-se, abife-se, abafe-se. Bem se sabe da razão, outra que não a utilitária laboral.
As melhoras. Abç