terça-feira, 30 de outubro de 2007

LAMPADA VELADA


Baden Powell (1857/1941)



No restaurante da pequena cidade, estão os escuteiros. Lembro-me que desprezava esta liberdade vigiada, quando encontrava em plena aventura adolescente o seu acampamento. Mas observo esta bela energia em uniforme e não posso deixar de admirar a sabedoria da instituição. É prolongar as aulas práticas e a lição de cortesia. O jovem sente-se na sua horda, mas é contido por uma espécie de honra ligada aos calções e à blusa. Vejo-os rir do riso agreste que lhes é próprio e dizer os disparates e trocadilhos que eu dizia. Há timidez da natureza no modo brusco e fanfarrão como interpelam os adultos que servem à mesa. Respondem-lhes com o sobrolho carregado os homens de avental. Estão à defesa perante o número e a ordem surpreendente.
Sorrio para mim, porque passei essa idade e a julgo com ternura escrava. Mas mergulho na sopa e logo aqueço. A hortaliça caseira toma conta dos meus pensamentos. Com o seu agradável vapor nas faces, sinto-me transportado para o que aquele grupo saudável já deixou para trás. Por um momento eu é que sou a criança naquela sala. Mas o meu exterior deve ser o mesmo, com os ângulos do tempo. A verdadeira volúpia é solitária. Nenhuma conversação me distrai do gosto a que me aplico de cada espécie da terra e do traço único da cozinha que depende geralmente duma divindade feminina. O apetite dos rapazes, aguçado pela marcha ao ar livre, é bom de ver. Mas sou eu que contemplo e respeito os alimentos. Cada batata frita é uma oferenda e uma metáfora do campo e do corpo humano, fonte do trabalho e do prazer.
Ouvi um operário dizer que não podia estar muito tempo a olhar para o prato. E havia nisso não só a pressa de acabar com uma pausa inútil e o apreço da coisa que se ganhou pelo esforço próprio, mas também o orgulho ingénuo de quem vai direito aos seus fins. Não há lugar aqui para venerar a natureza e o seu labor misterioso. É a lei da troca que faz esta rudeza sem tempo para os deuses. Por isso se come como quem arranca com os dentes um direito. Talvez que esse gesto seja mais propício a dar prazer ao espírito em vez do corpo, o que não diz a aparência. É caso para dizer que o estômago operário é primeiro que tudo político.
Ora a maior parte das vezes, eu como sem gosto, e isso é uma história antiga. É a disciplina quotidiana das paixões. Mas não originalmente voluntária. Aprendi a ser frugal como se aprende a ortografia: repetindo e sempre forçado um pouco. Que me acontece então neste domingo frescote diante da mesa dos moços? Visito o templo que se reconstruiu em três dias. A luz do espírito como que suspensa durante a orgia dos sentidos. Mas ao alcance da mão para nos iluminar no regresso.

0 comentários: