Maltratado pelo ritmo da cidade, pela fúria de trabalhar mais depressa, o corpo protesta abandonado da razão. E eu procuro calá-lo, deixando de tomar café e de me deitar tarde. Mas o medo de que ele queira dizer-me uma coisa importante leva-me ao médico.
Podemos viver com os sintomas conhecidos sem lhes dar excessiva atenção. É como se o corpo perdesse a faculdade de se fazer ouvir e de interessar este inquilino sem respeito. Porém, basta um sinal incompreensível para nos lançar em terríveis conjecturas. Que me importa o ruído do motor no carro do amigo que me leva a casa? Mas bem vejo como isso se faz ruga e distrai da conversação. Quanto mais esta outra máquina, pela qual existo e penso, parece merecer os cuidados dum mecânico.
Mas o que trago do consultório é a ordem de viver doutra maneira, porque o médico é honesto e não cede perante a minha imaginação. Há um pensamento em Gandhi que ilustra bem esta loucura da medicina. Ele quis sempre sofrer todas as consequências dos seus actos. Um jantar copioso que nos soube bem pode resultar numa indigestão. Pois bem, é preciso aguentá-la. Excitei-me durante o dia e não consigo dormir? Que a mão se mantenha longe do frasco das pílulas. É que quando recorremos às drogas, desfazemo-nos duma parte do corpo e perdemos a experiência necessária. Se nos podemos furtar à dor e ao desconforto que são efeito dos nossos actos voluntários, entramos num círculo de irrealidade e não somos mais responsáveis.
Esta medicina apaga os ângulos da vida e habitua-nos a uma espécie de tristeza que é feita de prazeres sem risco e sem medida. A criança se crescesse tão protegida nunca chegaria a ser homem. E é isso que nos promete este ideal da anestesia. Claro que é possível imaginar a velocidade e a ausência de dor na gravidez e no parto, bem como no processo de germinação das plantas. Atingiremos, quem sabe, a velocidade da luz e o completo domínio das sensações. A tal ponto que não haverá diferença entre ser e imaginar. Mas teríamos destruído o homem. E então era preciso buscar quem pensasse por ele.
O geómetra, o medidor do tempo, o conhecedor da ciência dos sinais e da linguagem. Sem corpo, esse pensador não poderia actualizar os conhecimentos, nem sequer compreendê-los. O mito do computador a fazer as vezes de cérebro num mundo de escravos é uma inépcia completa, mas diz muito sobre o espírito desta época de insensível decadência.
O que dizes meu corpo? Que estás mal? Mas se tens razão, vou dar-te murros ou pôr tampões nos ouvidos? A cidade convida-me à febre e ao reflexo eléctrico. É fácil seguir a multidão apressada. Neste dia sem transportes, muita gente descobriu as pernas e a companhia do ar livre. Se olhar à minha volta e examinar o que faço durante o dia, traduzo bem esse sinal. Só se deve ter medo dum corpo que não sente. Paradoxo.
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