segunda-feira, 14 de março de 2005

MIL GARATUJAS FLORESCEM

 

 
A sequência das janelas e parede é interrompida de súbito pela rúbrica escarrada. O ordenamento da moldura e o fundo em que se destaca colapsa pela irrupção duma hedionda garatuja. Percebe-se em certas ruas que nessa demência garatujal existe o horror do vácuo. Nada lhe escapa, desde a fachada secular que atesta da vetustidade da urbe à pedra polida da nova agência bancária. O soco das estátuas sucumbe a esse vómito, os cafés emblemáticos, os bancos dos jardins, os transportes públicos. Escapa a altura e o que não existe no estado sólido. A sanha não consegue atingir o primeiro andar, como uma inundação infecta a que o dedo divino fixasse um limite. O ar, as águas não podem ainda ser pichados. Valha-nos o céu e o mar.

Não se sabe quantos (mas não têm de ser muitos; pode ser um maníaco apenas, um serial-killer da arquitectura) se entregam a esta nefanda actividade nocturna que nenhuma polícia persegue, nem nenhuma censura pública condena. Imagina-se o encolher de ombros do cidadão comum, perante mais este “vandalismo juvenil”. Juvenil? Se o médium é informal, a loucura é tão velha como a razão.

O pior é que a publicidade e o anátema multiplicariam as garatujas. Na impunidade (quem pode vigiar as paredes ou impedir a venda da tinta?), veríamos a peste estender-se a novos territórios. Alastrar dos edifícios para os automóveis, criando o pânico e uma verdadeira cólera, infelizmente impotente.

Mas quem conspurca o rosto da cidade devia ser punido como quem polui a água que bebemos. Aqui nem sequer estão em jogo os postos de trabalho de qualquer empresa infractora, no melhor, trata-se duma auto-terapia selvagem, predadora, para os portadores dum vírus anti-urbano de novo tipo.

Primeiro, actualizar a lei que estabelece o crime e a punição. Depois, investigar a partir dos indícios, num trabalho detectivesco, certamente menos complicado do que outros. Finalmente, punir, mas sem televisão, porque esta pode compensar o crime, proporcionando o espaço de afirmação e a notoriedade que esta psicopatia procura.

A estranha passividade perante esta praga tem uma explicação plausível. O desleixo nacional pelo que é de todos é a infeliz contrapartida da omnipotência que se espera do Estado a quem se comete a resolução de todos os problemas, atitude que é ainda o fruto das décadas de ditadura, vindo esta no seguimento duma menoridade mais longa.

Aquele que deita os papéis para o chão ou escarra nas calçadas, à espera que os serviços competentes tratem do seu lixo, é o mesmo que facilmente se conforma com a cal das nossas paredes conspurcada por mão demente.

Nas garatujas, não há palavras, mas há uma mensagem. Esta é uma espécie de baba que anexa a realidade de alguém ou de um grupo que perdeu o contacto, a quem a chamada sociedade de informação nada diz e que regrediu para os rituais de reconhecimento animal.

Apesar da mensagem não ser política (mas é contra a cidade), nem aparentemente subversiva, deveria merecer toda a atenção dos poderes públicos e das autoridades sanitárias. Este desalinho urbano que nos desfigura contribui, mais do que se pensa, para a baixa de auto-estima do cidadão comum.

1 comentários:

Isolda Ribeiro disse...

O texto refere-se à sua cidade em Portugal, mas podia muito bem referir-se à minha, no Brasil.