Este Inferno de autor anónimo do
século XVI, que se encontra no Museu de Arte Antiga, em Lisboa, representa uma
ideia do horror ainda ingénua, para dizer assim. Não concebe o sanguinolento, o
"gore" dos filmes modernos, nem a dissolução das formas de que o
modelo da tetralogia de "Alien" fez um uso modelar, neste tempo de
medos virais, de poluição e de contaminação. O corpo torturado está inteiro,
não se derrama nem se liquefaz. É como se devesse conservar a forma para uma
nova reencarnação e um novo ciclo de punição.
Cada um dos demónios tem o papel de
funcionário do seu instrumento e são todos mais apagados do que os corpos dos
condenados. O próprio Satanás é uma figura insignificante que mal sobressai da
sombra.
A ideia que dá esta pintura é a de
mostrar a "carne" e a sua capacidade de se auto-destruir, sem
influências externas, o que é o contrário do que ensina Spinoza que diz, por
outras palavras, que cada ser é perfeito até encontrar a causa exterior que o
destrua. Para não considerarmos isto absurdo, devemos ter em conta que o ser
individual é, como alguém disse, a superfície da espécie ( e esta, por sua
vez...).
O que é curioso é que o objecto da
tortura, aqui, seja a boca ou a cabeça. Nada de sexual nesta parafernália
terrorista. Ao supliciar a carne, mas deixando-a intacta, visa-se o pensamento.
Diferentemente dos nossos medos de hoje que são mais físicos ( o que não quer
dizer que os possamos sempre definir) do que metafísicos, os homens de
Quinhentos, a julgar, por este retábulo, eram ensinados a temer o desvio de opinião. Para os poderes
obterem o conformismo tinham de recorrer às práticas mais violentas para deixar
uma marca na imaginação das gentes. Nisso, atingimos o cume do "menor
esforço": moldando os espíritos pela gestão de massas. Os hábitos privados
em vez de serem impostos são naturalmente adoptados, graças ao fascínio da
tecnologia e, como se sabe, atrás dos hábitos ou dos ritos vêm as crenças.
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