Cartaz de "A Canção de Lisboa" (1933-José Cottinelli Telmo)
O que dá o sabor a um filme português dos anos trinta, como este, é ver-se o condimento popular da revista, do trocadilho e da anedota tão bem aproveitado. A técnica do cinema é posta ao serviço da função política de divertir, sem nenhuma má consciência. Daí o seu anacronismo delicioso. O analfabetismo do espectador da época em matéria de cinema permitia experiências, depois abandonadas pela definição do gosto. Hoje parece-nos delirante a cena da “Canção de Lisboa” em que o alfaiate transforma a prova do fato numa prova dos nove. Há aqui muito do verbalismo louco dos irmãos Marx e uma preguiça bem portuguesa de pôr de lado um filão prejudicial à economia da obra. Porque o trocadilho é o motor do diálogo e da acção numa cena concebida à margem da continuidade formal, mas o paradoxo é que a unidade não se ressente disso, como se o paralelismo com a revista pudesse ser sustentado. A passagem dum registo a outro é também típica da comédia musical que a “Canção de Lisboa” é. Canta-se sempre aqui a propósito, sem quebrar a acção, e o jogo de palavras do alfaiate é uma canção branca. Um actor como António Silva é a alma desta verborreia cómica. O seu génio caricatural salva a comédia de cair no sentimento, o que é fácil quando um Vasco Santana, por exemplo, canta o fado. O fado é uma mistura que pode ser fatal à comédia. Mas é a ocasião de perguntarmos se a função da tristeza não é nos filmes portugueses de diversão da época a de nos condoermos de nós mesmos, revelando assim que não é a crítica que visa este riso, mas a complacência. Não tira que se nos rimos, a ternura resigna-nos sem nos fechar os olhos. A história dum cábula, dum pinga-amor que engana as velhas tias, se tem um desfecho edificante é como uma coda musical que reúne os temas esquecidos pelo caminho. A maior parte das cenas procura um efeito cómico independente. É assim o diálogo da janela que existe por causa da piada da guilhotina. A virtude deste humor à outrance, que não respeita as convenções do realismo nem do verosímil, é a de envolver as instituições aparentemente respeitáveis e respeitadas como a universidade e o governo numa crítica que se desconhece, diríamos. Difícil tarefa para um censor inteligente.
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