quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

UM FUNERAL


Mahatma Gandhi (1869 – 1948)


Quando morrer ficarei mais perto de ti. O corpo é um obstáculo.” Disse o Mahatma a uma das suas fiéis. E eu não posso deixar de pensar nisso ao ver a urna daquele que foi um soldado do partido e deixou dezasseis anos da sua vida no Tarrafal. Que o homem que já não é mereça aquela homenagem é a melhor refutação do materialismo. Por nada deste mundo o partido abandonaria o cerimonial do enterro dos heróis, porque o heroísmo é o seu mito de origem. As flores encheram a capela mortuária dum vermelho sem mácula. O corpo pertencia menos à família do que à organização, e os gritos da viúva foram discretamente evacuados pelos mais novos que se portaram com a dignidade da hora. No rosto deles lia-se o juramento de continuar a luta. De vez em quando, flutua uma alegria a despropósito entre os camaradas que não se viam há muito. O operário que fez campismo comigo em Mira vai deixar a fábrica para se tornar funcionário. Este amigo de ideias abruptas, que gosta de bater com o punho, vai continuar a geração da dureza e da intolerância. Mas eu não tenho o direito de julgar a barriga dum homem que trocou um emprego estável e bem remunerado pela febre das reuniões e a amizade desnaturada do partido. O carro fúnebre manteve o andamento grave conveniente, mas da fila alguns impacientes escaparam para esperar à porta do cemitério, onde corria a brisa suave. Uma carrinha com altifalantes encostou-se às grades. Em cima, reconheci um dos camaradas mais devotados que cheguei a ir ver ao hospital, quando foi baleado em Custóias. Esmago o cinismo na areia do caminho entre as campas. O morto aguarda a terra envolvido na bandeira da foice e do martelo. Um intelectual discursa. Insurge-se contra os órgãos de informação que não quiseram publicar a biografia do morto. Mesmo naquele momento solene, em que as palavras parecem sacerdotais e o espírito é recolhido pela comunidade dos fiéis, é preciso inventar a política e o combate. Como se a alma deste modesto militante, a quem a doença e a democracia tinham habituado a uma espécie de reforma, pudesse não ser justificada pela simples poesia do adeus. Falou também um velho companheiro do Tarrafal, com o coração e sem procurar efeitos. Disse esta coisa reveladora: prosseguir era necessário para ver se de uma vez por todas livramos a nossa pátria da injustiça e do fascismo. Talvez não fossem exactamente estas as palavras. Mas fica-nos a ideia de que se luta pelo repouso, o que é o pensamento dum velho, e no fundo é toda a religião. Sabemos que o espírito é perpétua oposição e que a ideia da paz lhe é consubstancial. As revoluções têm necessariamente de ser traídas.

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