sábado, 28 de fevereiro de 2009

GODARDISMO

"Sauve qui peut (la vie)" (1980-Jean-Luc Godard)



A ruptura com o passado é a nevrose da época. Godard, marginal do cinema, tem o talento negativo das ideias superficiais e do falso testemunho. A obsessão de romper com o discurso cinematográfico não o impede de se demorar, contudo, nas cenas sexuais, a ponto de haver dois filmes em “Sauve qui peut (la vie)”. O comentário off, por vezes brilhante ( o homem é mais infantil, mas teve menos infância), é uma espécie de viático para fazer passar as imagens a uma coerência estranha. Os seus filmes são rascunhos encaixilhados pela moda e pela confusão intelectual dos tempos. Em “Pierrot”, disse que esta era a civilização do cu, e é isso que não se cansa de dizer, cada vez citando menos o cinema dos outros e mais a literatura (Duras). É o capitalista dum estilo inacabado. O seu mundo é o aborrecimento. A crise duma organização mental, eficaz no domínio da linguagem. Pretender abordar o que aí se diz em termos de realidade é ignorar a natureza deste cinema que responde pela dificuldade da sua leitura e pela subversão formal sistematizada a uma certa procura intelectual. À maneira dos diplomas, dá também a necessária caução a uma sociedade de privilégios. A Paris do dinheiro e do sexo engendra o mito da vitalidade não codificada que torna o secundário o verdadeiramente importante, e põe em xeque a regularidade e a repetição. A ecologia da bicicleta, a paisagem por detrás da fábrica, a Revolução são tratadas com a distância dum olhar desiludido e cúmplice da tentação do grande bordel, que em Fellini tem o mérito de se declarar imaginário e pessoal (?). A irreverência reduz-se ao truque da deformação que o respeito da unidade (ainda assim) impõe para além da função brechtiana ou do efeito de surpresa. O abuso do ralenti é assim como a gaguez dum cinema que só recupera a fala para ilustrar a perversão sadiana (sempre a literatura). A máquina erótica montada no escritório do homem de negócios é a parte discursiva duma apologia da força e da violência factual, desculpadas pela atribuição do desespero ao organizador da cena por parte da vítima funcional. A liberdade, comprometida para sempre com o fracasso da emancipação feminina, é o fantasma que desagrega a sociedade e os seus fundamentos familiares e individuais. Por uma espécie de genocídio cultural, em que os media desempenham um papel preponderante, toda a gente se descobriu dum dia para o outro com direito à sua diferença e a um modelo personalizado de vida, obviamente procurado pela sociedade de consumo; como ser criado pela publicidade, o homem partiu em busca de si mesmo num passado que nunca existiu, atrás dum mundo sem relações de dependência, de herança sentimental e espiritual, tanto como de coacção económica e política. Conduzido nessa deambulação nas trevas por essa fatal figura da modernidade que esconde um corpo de bode sob a graça ousada da mulher. E por que é hoje a liberdade o ácido dissolvente por excelência? Por aquilo mesmo que Comte disse sobre o espírito crítico numa fase de reorganização da sociedade e pela configuração desse espírito com a velocidade da tecnologia electrónica e do princípio do prazer que é a ideia moral e económica da nova sociedade capitalista. O seu consenso.

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