terça-feira, 7 de outubro de 2014

A DESAPARECIDA ASPADA

Gone Girl (2014, David Fincher)



A certa altura, no começo do filme, Nick (Ben Affleck), enquanto acaricia a cabeça apoiada na almofada de Amy (Rosamund Pike), de costas para ele, pensa "nas questões primordiais do casamento": "Em que é que estás a pensar? Como é que te sentes? O que é que fizemos um ao outro?". Mas essas questões não revelam aqui uma preocupação 'habitual' no amor ou na dependência. Revelam vigilância defensiva, porque ele explicita a seguir o que quer dizer: "Imagino abrir-lhe a cabeça e desbobinar o seu cérebro, à procura de respostas." Terrível, não é?

Por que é que aquela relação, tendo começado (no ambiente efusivo de uma festa) pelo 'cliché' do 'coup de foudre', em que o espírito de ambos brilhou no uníssono orgasmático, afinal, foi o primeiro passo em falso
Seguiram-se cinco anos de observação mútua, em que só se podiam registar desilusões. Ele, que vinha dum meio social 'inferior', experimentava todas as especiarias da humilhação, ao lado de uma mulher tão dotada.

O descalabro veio com a mudança para o Missouri, a terra natal de Nick, para cuidar da mãe cancerosa.
Ele arranjou um caso com uma aluna e passou a 'estranhar' Amy com quem era já uma tortura viver. É então que Amy resolve vingar-se, desaparecendo e deixando pistas para incriminar o marido com um muito presumível assassinato.

A resposta de Nick foi tentar convencê-la, através do 'reality show' montado pela televisão tablóide que tinha assentado arraiais à porta de sua casa, de que deseja ardentemente o seu regresso, de que continua a amá-la.

O desfecho seria melodramático contado por outro. Amy regressa, ensanguentada do crime que acabara de cometer na pessoa dum seu antigo admirador, e a 'opinião pública' logo se converte a esta nova oportunidade do casamento.

Mas a desconfiança entre ambos não podia ser maior. Nick rende-se à 'realpolitik' para não ir preso. Quando, para convencer Amy (toda entregue à simulação do grande amor), lhe descreve o futuro desse casamento como uma prisão, ela responde com toda a seriedade que o casamento é isso mesmo.

Esgota-se aqui a riqueza das interpretações possíveis do mais hitchcockeano dos filmes de Fincher? Nem por sombras. Hitchcock talvez nos enganasse com a simplicidade explícita dos seus motivos. David Fincher, com mais esta obra magistral, não teme ser complexo. "Gone Girl" não é apenas um 'thriller' inquietante.

A análise do casamento moderno, sobretudo do casamento sem filhos, da utopia sempre presente nele, apesar de cada vez mais se oferecer ao 'materialismo', promete-nos uma temática com grande futuro.

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