terça-feira, 5 de setembro de 2017

SEM TESTAMENTO



"O Silêncio" (1963-Ingmar Bergman)



"Notre héritage n'est précédé d'aucun testament."
René Char

No filme de Ingmar Bergman, "O Silêncio", Anna (Gunnel Lindblom), a irmã mais nova, lamenta o tempo em que, com o pai ainda vivo e obedecendo-lhe, sabiam o que fazer.

Depois, Esther (Ingrid Thulin), a mais velha, tentou substituir-se à figura paterna, recorrendo a uma superioridade intelectual que confundiu, por um tempo, a ingenuidade de Anna. A necessidade que proclamava de encontrar um sentido para cada coisa dava-lhe a ela, a tradutora que falhava nos dois sentidos da tradução [tradere, de repor uma herança e transmittere, de repo-la de tal modo que o herdeiro a faça sua, a conserve e lhe dê vida (Anne Dalsuet)], uma supremacia que a mais nova não deixou de sentir como um poder dirigido contra si.

A verdade é que, desde a morte do pai, ambas estão entregues a si próprias, num caminho de trevas. É, exemplarmente, a situação descrita pelo poeta de uma herança sem testamento.

Sem dúvida, porque o passado não foi salvo (no sentido em que se deixou que fosse contaminado pela morte, e no de não ter sido "gravado", como se diz em informática), e o espírito ancestral deixou de ser uma presença viva.

É este "seco, fero e estéril" positivismo que o último gesto de Esther, abandonada no hotel, parece desmentir, deixando à criança aquele papel com uma palavra: alma.

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