quarta-feira, 20 de setembro de 2017

O GRÃO DA PELE



"Mulher empoando o pescoço" (Utamaro)


"Eu, dizia-me isso a mim mesmo, porque acreditava que há um conhecimento pelos lábios; dizia-me que ia conhecer o gosto dessa rosa carnal, porque não tinha pensado que ao homem, criatura evidentemente menos rudimentar que o ouriço do mar ou até a baleia, falta no entanto um certo número de órgãos essenciais, e nomeadamente algum que sirva para o beijo. Esse órgão ausente, ele substituiu-o pelos lábios, e através disso talvez chegue a um resultado um pouco mais satisfatório do que se estivesse reduzido a acariciar a bem-amada com um chifre. Mas os lábios, feitos para levar ao palato o sabor daquilo que os tenta têm de contentar-se, sem compreender o seu erro e sem confessarem a sua decepção, com vaguearem à superfície e chocar com a barreira da face impenetrável e desejada."

"Le côté de Guermantes" (Marcel Proust)

Pouca gente subscreveria, suponho, esta teoria do beijo, ainda que noutras culturas ele não tenha a importância que lhe damos.

Proust começa por uma metáfora gastronómica, mais próxima da verdade do desejo, e acaba na do microscópio. Ele diz: "nessa zona desolada, onde não podem encontrar o seu alimento, eles (os lábios) estão sós, o olhar e a seguir o odor abandonaram-nos há muito tempo. Primeiro, à medida que a minha boca começou a aproximar-se das faces que os meus olhares lhe tinham proposto beijar, estes, deslocando-se viram novas faces; o pescoço, visto de perto e como que à lupa, mostrou, nos seus largos grãos, uma robustez que modificou o carácter da figura."

O tacto e o gosto, transferindo-se ambos para o olhar, encontram o objecto não comestível, verdadeiro índice da ausência do desejo.

Mas com a mudança final da figura, e conhecendo as inclinações do romancista, perguntamo-nos se não é precisamente então que o desejo pode ser conjurado.

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