quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

COMO UM CÃO

"The Trial" (Orson Welles)

 

"Enquanto a sua visão enfraquecia, K. viu os dois cavalheiros cara com cara mesmo em frente da sua face, observando o resultado. "Como um cão!" disse, era como se a vergonha de tudo aquilo lhe sobrevivesse."

"O Processo" (Franz Kafka)

Depois da cerimónia em que passaram a faca de talhante de um para o outro, como se um último escrúpulo os fizesse hesitar, os dois funcionários ('gentlemen', como diz a versão inglesa) desobrigaram-se da sua tarefa, espetando a faca por duas vezes no pescoço do 'réu'.

Se o romance não estava acabado na mente de Kafka, não podia ter sido 'interrompido' de melhor maneira. O processo que K. nunca pôde consultar e que estabelecia a culpa 'metafísica' (tal como a dos que seriam arrastados, apenas umas décadas mais tarde, para os campos), o juiz que o condenou, sem que K. soubesse quem era, como não sabia das provas em que a sentença se baseava, ou da argumentação utilizada, não tinham, de facto, importância.

As últimas palavras do condenado explicam melhor do que qualquer discurso o facto do 'processo' ser no fundo o sintoma de ter sido excluído da humanidade. Aquela espécie de justiça não era penal, nem corrigia coisa alguma. A Lei mostrava-se independente disso. Tinha a autonomia de uma máquina que se alimenta do seu próprio movimento.

Mas o escritor deixa-nos outra palavra desafiante. A vergonha (para quem?) que há-de ficar associada ao seu caso, àquela 'execução' no descampado suburbano, longe dos olhares. Será então a vergonha dos outros. A dos que não querem ver e que espiam da janela iluminada de que o autor fala nas últimas linhas?

 

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