segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

AGGIORNAMENTO OU TALVEZ NÃO



"Uma vez que se tenha por certa a relatividade do movimento, um antigo sistema de referência humano e cristão não tem direito algum de interferir nos cálculos astronómicos e na sua simplificação heliocêntrica; tem, no entanto, o direito de se manter fiel ao seu método de preservar a Terra em relação à dignidade humana e de ordenar o mundo em torno de tudo o que no mundo sempre aconteceu e acontecerá."

Ernst Bloch ("Das Prinzip Hoffnung")

"A Igreja da época de Galileu atém-se à razão mais do que o próprio Galileu, e toma em consideração também as consequências éticas e sociais da doutrina galilaica. A sentença contra Galileu foi racional e justa, e só por motivos de oportunidade política se pode legitimar a sua revisão."

Paul Feyerabend ("Wider den Methodenzwang")


Estas citações constam da obra do cardeal Ratzinger "A Igreja e a Nova Europa", escrita na altura em que era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, e exemplificam o que considera a crise da fé na ciência. Terá sido, aliás, este espírito de contumaz confirmação da sentença da Inquisição, condenando o pai da ciência moderna, que terá estado por detrás dos protestos que inviabilizaram a conferência do papa na universidade La Sapienza, em Roma (e, assim, foi uma universidade a assumir a verdadeira posição teológica contra a liberdade da crítica).

Ratzinger adopta uma posição de claro contra-ataque àquela crítica que pretende ligar a Igreja ao obscurantismo ou aos sentimentos e contra a racionalidade. E, ultrapassando-a, propõe-nos uma racionalidade superior à razão instrumental e à razão cientifica.

O apoio que encontra num "marxista romântico" (Bloch), com a tese de que haveria uma razão da dignidade humana com o direito a defender-se no processo da "simplificação heliocêntrica", ou num "agnóstico-céptico" (Feyerabend), inesperado apóstolo da razão da Igreja no caso de Galileu e da superioridade da sua razão ética e social que seriam mais razoáveis do que os cálculos astronómicos, parece anunciar que estaria em aberto um debate entre a Igreja e a Ciência que nada deixaria como dantes. Se, como papa, Ratzinger pudesse ser ainda filósofo.

Pela primeira vez, a Igreja assumiu uma posição anti-científica com argumentos não teológicos, mas colhidos no próprio "espírito do tempo".

Depois do aggiornamento de João XXIII, que renovou a liturgia e a fisionomia da Igreja, um papa intelectual e declaradamente anti-moderno poderia contribuir para uma saudável separação de águas entre a religião e o poder, mesmo que não fosse no sentido de aprofundar a reforma do papa Roncalli.

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