quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

UN PROMENEUR


"Les rêveries du promeneur solitaire"
- René Magritte



Estendido na relva do parque, leio. Mas surge-me a figura dum homem que procura repouso e não sabe como. O inesperado encontro não consegue ensombrar-me porque o céu é azul e tudo brilha. Assim, levanto-me depois duma imperceptível hesitação. Primeiro explicamos o que andamos a fazer por tão solitários recantos. O livro aberto ainda fala por si, e é como se eu tivesse que voltar à cama a todo o momento.

Ele está com baixa há longos meses e o médico mandou-o distrair o espírito. Eis uma pessoa com quem não teria espontaneamente uma conversa se não fosse aquela afinidade do lugar e a presença benfazeja das árvores. Quantas vezes me limitei a saudá-lo no autocarro e nas escadas da empresa! O seu caso é um daqueles incompreensíveis efeitos da política.

Ao fim de trinta anos de trabalho, a profissão nunca é simplesmente a actividade remunerada, necessária pela força das circunstâncias, mas que se pode esquecer como os anos de sono. Mesmo o frívolo procura resgatar o tempo do trabalho. É como que o monumento duma vida erguido insensivelmente pelo esforço quotidiano. Não parece que isso se salve do passado, mas é preciso ter vivido para lhe conhecer o significado. O homem não pode desprezar nada do que foi, e eu rio-me dos que dizem só pensar na reforma. Agora, a este doente imaginário, os anos de África e na província são o melhor do seu esforço dado ao patrão. Fala-me em sacrifícios e horas não pagas, quilómetros por sua conta. Tudo para ser ultrapassado pelo amigo de fulano que nem quinze anos de casa tem, e toda a gente sabe o que vale.

Foi tirar um electrocardiograma. Não se deve falar no trabalho porque se exalta logo, e eu que desculpe ter-me interrompido a leitura. Fecho o livro para mostrar as minhas intenções e convido-o a atravessar o parque, porque é quase meio-dia.

A família que veio escolher plantas para casa já leva o saco atulhado. O homem vai à frente com a faca. Sinto-me responsável por cada flor e cada pé de erva e, no entanto, sei que os verdadeiros vândalos não são estes. A cidade ainda não usa o seu parque e é isso talvez que me seduz. O meu azedo interlocutor quer ouvir a minha opinião sobre o que se passa na empresa: a gestão, os externos, as promoções. Bem vejo que o meu diagnóstico o justifica, porque o apaixonado quer ver tudo da mesma cor, e se o mundo tiver que ruir só para lhe dar razão, ele não hesita. Ora a empresa vai mal na opinião corrente. Isso, porém, não quer dizer que já alguma vez estivesse melhor de saúde. É uma crise da liberdade de palavra que, evidentemente, pode ter efeitos económicos. Recorrer à baixa para não ter de enfrentar uma situação que se considera vexatória é um expediente usado por muitos, e eu confesso a minha intolerância. Porque é fugir pela primeira porta aberta.

Um maior rigor da lei e mais coragem da parte de alguns médicos forjariam outro tipo de dignidade, com o resultado de haver mais respeito nas empresas pelas pessoas. Mas eu digo ainda que essa luta com os homens era muito melhor para a saúde do que esta reforma perseguida por fantasmas. Vontade de se condenar.

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