terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

HABITAÇÃO DO FUTURO


Robert de Montesquiou
(presumível modelo do barão de Charlus)


"É verdade que pouco tempo antes, como os meus pais me censurassem por não me ter ainda dado ao trabalho de escrever duas linhas ao Sr. de Charlus, eu os tinha violentamente censurado de me quererem fazer aceitar propostas desonestas. Mas só a cólera, o desejo de encontrar uma frase que lhes pudesse ser mais desagradável me tinha ditado essa resposta mentirosa. Na realidade, eu nada tinha imaginado de sensual, nem mesmo de sentimental sob as ofertas do barão. Tinha dito isso aos meus pais por pura loucura. Mas algumas vezes o futuro habita em nós sem que o saibamos, e as nossas palavras que crêem mentir desenham uma realidade próxima."

"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)


Por esta altura, já o leitor sabe quais são as verdadeiras intenções do barão e imagina que o seu último encontro com o jovem Marcel se saldou numa frustração.

Mas de acordo com a sua declaração de vícios a Jupien, não era a possessão física que ambicionava, mas "tocar a corda sensível" do jovem mundano, tê-lo à sua disposição, rendido à fúria do seu desmedido orgulho.

Essa possessão pode ser mais violenta do que a possessão física. E a resposta de Marcel aos pais prova bem que o seu instinto não o enganava.

Por outro lado, que o futuro habite em nós é-nos tão natural (a começar pela nossa própria morte), que nos sentimos tentados a procurar outro sentido para a expressão.

Pode ser que aqui o tempo assuma a forma duma nova interpretação dos factos. Estes são passado e por isso "habitam" já em nós. Mas a leitura que viermos a fazer deles é futuro.

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