quarta-feira, 7 de maio de 2014

OS HUMORES SEM DONO

 

"Às vezes tenho a sensação de ser até uma pessoa forte, mas para os outros mostro sempre uma gentileza, um empenhamento e uma benevolência que me saem frequentemente sem eu dar por isso. Então tenho esta teoria: uma pessoa deve ter suficiente sentido social para não causar fastídio aos outros com os seus próprios humores. Mas não se trata, de facto, de humores. Reprimindo-me a mim mesma, eu torno a ser associal. No sentido que depois não estou para ninguém, por dias inteiros."

Etty Hillesum ("An Interrupted Life": The Diaries, 1941-1943")

 

A 'repressão' dos humores de que fala Etty é o que distingue, por exemplo, a vida familiar da vida em sociedade.

Numa célebre análise, Alain mostra como não conseguimos dar o melhor de nós mesmos, se nos é consentido, como se diz agora, ser 'transparentes'.

É por isso, diz o filósofo, que os pais não podem ser bons professores dos próprios filhos. É preciso alguma indiferença para não ceder à facilidade. Pelo contrário, em família, o 'feitio' de cada um é 'sinfónico'. É até uma quebra da 'sinceridade' qualquer distância em relação aos próprios sentimentos.

Pierre, em "Guerra e Paz", constantemente infringe as regras de convivência na sociedade de S. Petersburgo, onde príncipes e arquiduques se atêm a um rígido protocolo para matar qualquer ideia que pareça nova, e, logo, que inquiete o 'bom tom'. Bezuhov, com a sua ingenuidade, é um paquiderme no salão de Ana Pavlovna. André, que está longe de ser como o seu amigo, aborrece-se mortalmente em lugares como esse.

Voltando a essa apaixonante jovem holandesa, Etty, não é quando ela parece gentil e interessada para os outros que é menos ela própria, mesmo se a vontade não é de todo estranha a isso. E, certamente, quando 'não está para ninguém', também não está para si mesma.

 

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