domingo, 21 de outubro de 2012

A DESTRUIÇÃO DE TRÓIA






Uma das maiores lacunas da minha percepção histórica são os anos a seguir à Revolução de Outubro, de que, tirando o grande romance de Pasternak, só conheço visões ofuscadas pelo entusiasmo ou pelo denegrimento.

Vem-me à memória, por exemplo, a cena em que Ninotchka divide um ovo com os seus amigos, como ela, rendidos a Paris, no meio das idas e vindas dum outro locatário que usava a latrina comum.

Walter Benjamin, em “Imagens de Pensamento” (Assírio & Alvim), com a benevolência dum prosélito e a esperança que nos tempos da NEP era ainda possível, descreve-nos os rigores duma política necessária e que a todos tocava sem excepção.

Fala-nos da “corporação de moribundos” dos mendigos que padeceria da falta de vitalidade das coisas sem futuro: “a mendicidade perdeu a sua mais forte base, a má-consciência social, que abre bem mais os bolsos do que a compaixão.” E da febre de reorganização que tomou conta do país, mobilizando toda a gente de dia e de noite.

Não deixa de constatar que a vida privada tinha acabado: “ a burocratização, a actividade política, a imprensa, são tão poderosas que não resta tempo para interesses que não coincidam com elas. Nem tempo, nem espaço. As casas que antes acolhiam uma única família nas suas cinco ou oito divisões, albergam agora oito.”

“(...) Mas também não há cafés. Foram abolidos o comércio livre e a livre inteligência, pelo que os cafés perderam o seu público.”

E esta passagem que nos faz recordar os anos setenta, depois do 25 de Abril, em Portugal:

“(...) uma espécie de embrieguês, de tal modo que uma vida sem reuniões e comissões, debates, resoluções e votações ( e tudo isso são guerras ou pelo menos manobras da vontade de poder) se torna praticamente impossível.”

“(...) É hoje oficial a doutrina segundo a qual o que decide da natureza revolucionária ou contra-revolucionária de uma obra é a matéria e não a forma. Com tais doutrinas puxa-se o tapete aos escritores de forma irrevogável, do mesmo modo que a economia o fez no plano material”.

Enfim, ninguém pode ficar indiferente a estas páginas, vindas dum marxista, sobre um período extraordinariamente fecundo da História, em que tantas ideias foram pela primeira vez experimentadas a uma escala verdadeiramente prometeica. Todas as interpretações do que aconteceu a seguir que vejam aqui “in ovo” as tendências dum histórico fracasso ou o atribuam à entrada em cena de novas personagens ou de novos comportamentos, não podem retirar uma vírgula a uma grandiosa epopeia, cujo destino foi, talvez, o de se tornar um crime inaugural.

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