domingo, 8 de fevereiro de 2015

A MORAL BUCÓLICA

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" Não há adega, não há despensa, não há fogão de cozinha. A panela preta de barro de Prado ferve solitária sob o testo no pequeno lar enfumarado, à fogueira de cepas e de agulhas de pinheiro, entre os dois escabelos de castanho. Mas há broa em todos os balaios à porta do forno, há toucinho ou há unto, pelo menos, em todas as salgadeiras, há azeitonas no cântaro da salmoeira, há um ovo para pôr a cada galinha choca, uma braçada de erva para cada boi, uma côdea para cada cão, uma rasa de milho para cada fornada, uma estriga para cada roca, uma leira para cada enxada."

"As Farpas" (Ramalho Ortigão e Eça de Queirós)


Muito antes do 'pobrete mas alegrete', conotado com os tempos de Salazar, num certo imaginário português, o 'bom selvagem' rousseauista era assim servido pelos dois célebres farpantes.


Há aqui uma deliciosa harmonia que a Crítica importada vem pôr em causa. O estrangeirado Eça, nos últimos meses de vida procurará encontrar essa miragem, em Tormes, herança da mulher. A miragem alimenta o paradigma cidade/serra que gerou um conhecido romance. A descrição citada, que se inspira na paisagem humana da região do rio Lima, é um dos primeiros caboucos desse culto, culto que está sempre por trás da crítica feroz do autor dos "Maias".

Porque o bucolismo aparente engendra monstros, monstros mais cómicos do que terríveis. Acácio, Abranhos e 'tutti quanti' surgem a essa luz impiedosa por terem ultrapassado o tamanho da chinela. 'Simples' como estes, quando tentam erguer-se da sua condição provinciana para macaquear os 'verdadeiros' homens políticos (mas os robespierristas também se inspiraram nos Romanos) não podem esconder a tara original.

Eça e Ramalho malham, ou melhor, farpam. Tempos nada complicados esses, quando comparados com os de hoje. Porque a democracia e o individualismo revoltaram as águas, misturando o fundo com a superfície.


O povo tornou-se mais secreto. Não é possível reconhecê-lo no 'reality show' que pretensamente o retrata.

 

 

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