domingo, 14 de janeiro de 2007

O PRETÉRITO PERFEITO



Tudo é permitido no amor, excepto a indiferença.

"Le Passé Simple" conta a história dum rapto de memória mal sucedido e o sucesso duma reconciliação post-mortem. Aproveitar uma amnésia para conquistar o passado distante e esquecer o recente: o da infidelidade. É um estratagema do desespero, uma manobra para ganhar tempo como diz François. Ele corre o risco disso ser tomado como desprezo da liberdade do objecto amado.

Mas a prepotência é demasiado infantil para não revelar a paixão extrema. Enquanto procura subtrair-se às malhas da ficção do amante, Cécile descobre que toda a violência e toda a mentira que pode imputar-lhe são o signo certo de que é amada. Ou isto: que ela é livre apenas para saber que a paixão não é livre. E há neste sacrifício total do espírito uma tão grande força de atracção, uma “obrigação” de reciprocidade tamanha que, pelo simples facto de se mostrar, o amor se comunica. O que leva ao malogro e à mediocridade é, pelo contrário, a incapacidade de se atingir a evidência no amor, e isso é assim porque não se correm riscos, nem se teme a liberdade do outro.

Mas os sinais fortes comovem sempre. A morte do amor-paixão é a vida civil e os filhos. O egoísmo não repele o sentimento nem a paixão: o que é esta fúria senão uma pressa de chegar aos próprios fins e de guardar o seu bem? É tanto mais profundo o desejo do outro quanto mais ele me quer todo, salvando nessa aspiração o que em mim é inferior e digno apenas da minha atenção. Pode bem dizer-se que é o amor que eleva o egoísmo exacerbando-o, dando-lhe como que a sua imagem no corpo do outro. Como é pesado o fardo do amor de si mesmo! Ele é irreal à força de se defender do pensamento que quer subtilizá-lo. Enquanto que quem ama faz nascer o corpo para a voz directa.

O hábito, a segurança das emoções, a ordem que faz reinar a casa, tudo leva à economia do amor. Também é então que as ocasiões fazem a traição, por falta de sinais e da prova do fogo que dormita. O acidente de Céline trouxe a renovação dos corpos e um olhar desiludido sobre o terceiro. Vitor Lanoux não faz jogo limpo. Não se permite a verdade, mesmo quando apanhado em falso. Esconde detrás dum novo véu a memória que quer proteger da impaciência. E sobretudo do conteúdo que quer confrontar com a vida. Afinal nada se repete. Interrompida, a ligação com Bruno é passado perfeito. Ao contrário do amoroso, ele foi sábio e pareceu guardar as conveniências. E estava longe. Tinha sido um pretexto para pôr em causa uma relação duvidosa da sua identidade.

Bruno teria posto as cartas na mesa. De entrada daria toda a liberdade a Cécile, como quem diz: - não podes deixar de escolher-me a mim que sou leal e quero acima de tudo o teu bem. François não, e ganhou.

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