sábado, 20 de janeiro de 2007

SEREIAS E OUVIDOS TAPADOS



A atracção das sereias é perigosa para quem se desvia do seu fim. É uma força que ultrapassa as personagens e as submete a um destino trágico. Ouvir o canto é já perder-se. Todo o homem é Ulisses amarrado a um mastro de precauções e juramentos.

A força da sereia não vem do sexo. Na beleza há mais do que os sentidos e do que a harmonia. Sempre se representou a figura de torso nu com seios investidos da intensidade genital, e a água pede o corpo liso e as escamas. A sua roupagem é menos material do que atitude. Um modo de levar a cabeça e os ombros, de mexer o corpo no andar, uma pose que esconde o movimento das paixões.

As raparigas em flor não têm por que dissimular o excesso de vitalidade. E é servindo-se dum corpo inocente que atingem o fauno adormecido. Mas estes amores são correrias numa ilha perdida. Iludimo-nos sempre ao confiar na voz da imaginação; como se fôssemos sempre os mesmos e os outros fossem aquilo que parecem.

O mundo esbate-se em volta dum rosto por onde passa o universo da pintura e nós mesmos podemos fundir-nos no pigmento velado, sem forma. Desse sonho não se desperta sem uma decisão. Toda a força simbólica do nosso passado irrompe entre a linguagem e o corpo selvagem. Imitamos esse modelo perfeito que faz viver o que não se pensa, nem se fala. O desejo experimenta-nos como sujeito que não se conhece. É preciso uma certa história pessoal para conhecer a tentação da sereia. É preciso viver a perda da infância e a divisão interior entre luz e trevas.

A verdadeira paixão amorosa, a da alma, rejuvenesce o seu objecto, subtrai-o à obra do tempo. Enquanto que o adolescente vem a uma festa campestre pela mão das fadas. O amor é uma ideia futura que não tem pontos de apoio. Assim ele experimenta a necessidade de agir para conceber a ideia do amor. O canto não é para os seus ouvidos abertos a todos os sons do mundo.

Mas uma moça que ri com outra interpela este sexo presunçoso e ligeiro que quer sempre jogar a sua sorte. E como a timidez é o estado natural dos rapazes, o descerrar de dentes é a primeira das graças.

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