O Cambodja de Pol Pot
"No que me diz respeito, o ponto de viragem foi Pol Pot. Na época, muito poucos estavam ao corrente de Auschwitz. É verdade que havia alguns patifes que sabiam, filhos da puta que sabiam e não acreditavam, mas o seu número era ínfimo. O segredo dos nazis na matéria foi de uma fantástica eficácia. A rádio e a televisão faziam-se eco da carnificina no momento em que se desenrolava e informavam-nos que Pol Pot estava em vias de enterrar vivos cem mil homens, mulheres e crianças. Eu sou completamente incapaz de atribuir um sentido à frase: enterrar vivo um homem, uma mulher ou uma criança. Quanto mais cem mil!"
George Steiner (entrevista de Ronald Sharp)
Steiner esperava que as potências e Israel, por maioria de razão, interviessem para impedir esse holocausto. Nada disso aconteceu.
Aparentemente, o único efeito de se saber que essas atrocidades estavam a acontecer foi o de fazer alastrar à escala do planeta o cinismo e a insensibilidade, ao mesmo tempo que os sinceramente atingidos pela tragédia experimentavam o horror da impotência e a inutilidade do que sabiam.
Este caso-limite projecta uma luz muito incómoda sobre o significado da moderna "oração matinal" (que para Hegel era a leitura dos jornais). Porque à medida que se encurta o tempo entre os factos e a notícia - e, com a televisão e a Internet é, de facto, como se estivéssemos lá, intelectual e emocionalmente envolvidos -, mais óbvio se torna que a acção nos está vedada e que, portanto, mesmo o maior horror só pode ser vivido como espectáculo.
E se, para Descartes, a irresolução era o pior dos males, o que pensaria da situação do espectador que só pode decidir entre apagar o aparelho ( e sentir-se culpado de querer apenas preservar a tranquilidade do seu solipsismo e de revelar, aos olhos dos outros, o pecado da sub-informação) ou continuar com ele ligado para, com o tempo, se deixar anestesiar pelo confronto com um pseudo-problema (que o transcende enquanto sujeito ético)?
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