segunda-feira, 4 de junho de 2007

TELEFONEMA DE DONCIÈRES


"Orfeu" (Marc Chagall)

"Como é real esta voz tão próxima - na efectiva separação! Mas antecipação também de uma separação eterna! Muitas vezes, escutando desse modo, sem ver aquela que me falava de tão longe, me pareceu que essa voz chamava das profundezas de que não se volta a subir, e conheci a ansiedade que um dia me ia apertar, quando uma voz viesse assim ( sozinha, e já sem estar ligada a um corpo que eu nunca mais voltaria a ver), murmurar à minha orelha palavras que eu havia de desejar beijar ao passarem sobre os lábios para sempre feitos em poeira.)

"Du côté de Guermantes" (Marcel Proust)


A descoberta da voz pelo telefone, que apenas começara a sua revolução no tempo de Marcel, é o tema destas páginas impressionantes, em que o quotidiano se abre, subitamente, à dimensão do mito.

Uma simples prótese técnica operou uma análise sem precedentes da pessoa humana. Não é nenhum exagero evocar a separação definitiva a propósito da distância superada à custa da redução física a um sinal.

A televisão não encontrou o seu Proust. Ela instalou-se nas nossas vidas, como se fosse uma simples extensão de nós mesmos, com toda a naturalidade.

Mas, de certo modo, a experiência de Orfeu banalizou-se com a televisão.

Nas imagens que saturam a nossa existência procuramos também os mortos.

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