A paixão incompreensível de Lisa (Joan Fontaine) pelo pianista Brand (Louis Jourdan) em "Carta de uma desconhecida", de Max Ophüls (1948), deixa-nos metade do filme incrédulos e demasiado conscientes das rugas de um melodrama, superiormente encenado embora.
Mas depois da breve concretização do romance da Cinderela e do seu deus, ambos seguem o seu caminho; ela, casando e criando o filho de Brand e ele frustrando uma carreira de jovem prodígio, numa vida de dissipação e luxúria.
Quis o destino que se encontrassem na ópera (era a "Flauta Mágica", mas melhor se adequaria à história se fosse o "Don Giovanni", pois também ele não poderia contar as suas conquistas, nem sequer reconhecê-las).
Temos aqui na inimaginável falta de memória do sedutor o contraponto de uma paixão absurda.
Enquanto o rosto de Fontaine muda de luz ao ritmo da esperança e do desespero, conforme as palavras do amante sugerem que ele vai ao menos lembrar-se do seu nome, ou se abandona à sua lenga-lenga amorosa, o dele, meio na sombra, é a imagem do mal involuntário, da insensibilidade como arma de defesa, e ia dizer: da negação do amor. Mas não reconhecemos aqui Eros, enquanto filho da Penúria, como queria Diotima?
Esse momento ergue a "Carta de uma desconhecida" aos píncaros da arte.
Como Don Juan, ele está condenado ao Inferno. Mas a carta trouxe-lhe o arrependimento, com a notícia da morte de Lisa e do filho ignorado.
Quando vemos a carruagem que leva Brand ao lugar do duelo (a que ao princípio, levianamente, pretendia faltar), sabemos que Lisa o conseguiu "salvar" no último minuto.
E é de crer que nem só para os cristãos este final tenha um significado tão comovente.
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