domingo, 3 de junho de 2007

O FIM DA PINTURA


"Urinol" (Marcel Duchamp)


O pintor que rompeu com a pintura interrompe-me o livro. Quando oiço a sua voz forte ao telefone, sinto que ele conduz as nossas relações como um manager, apenas interessado na eficácia. Foi na noite de S. João que me propôs um trabalho colectivo entre a fotografia e a escrita. Quatro módulos com pequenas variações de tema, e espaços a preencher com as imagens descritas pelos participantes. Cada painel vai e vem, e de cada vez o artista lança um dado novo a partir da crescente definição do mosaico. A unidade de concepção não é realmente posta em causa pelos que fornecem a legenda. Não só a minha intervenção se reduz a um tema obrigatório e estimulante da disciplina criadora, como executando tudo do princípio ao fim, as indicações alheias não afectam a forma. Com efeito, perdida a caução do realismo, os objectos desaparecem da cena pictórica e da arte das imagens como estrutura e limite do jogo da imaginação.

Por maioria de razão a pintura abstracta tinha de separar o criador de formas da referência exterior e da própria ideia de necessidade. A menos que a matemática substitua a lei da percepção, o caminho encetado pelo ramo mais antigo das artes visuais conduz à imediata produção do inconsciente e ao fim da disciplina. Mas o exercício em que me aplico significa uma arte da combinação necessária. A minha frase prende numa articulação objectiva, realidade intencional dum sujeito livre, momento político que anula a oclusão da obra, o fluxo sem lei da emoção estética.

É verdade que se pode dizer que os outros actores dos vários módulos são um álibi da má-consciência do artista. Mas o facto a ter em conta é a meu ver ter o processo “colectivo” determinado também a forma dum discurso de imagens, em que a deixa dos actores é traduzida visualmente num objecto fotográfico ou pictórico, e onde o conjunto põe a questão do sentido. É caso para dizer que se trata então dum álibi fecundo. A arte moderna sofre da sua liberdade desincarnada, dum puro intelectualismo que ignora as condições da verdadeira beleza e a antiga função religiosa. Não é o objecto que forma os sentidos e verga à geométrica lei do espaço ou à física da luz a imaginação incoerente e tagarela.

O nosso tempo tem consciência de que a natureza antes de ser um objecto da percepção é uma experiência da linguagem e da relação humana. Afinal de contas, procurar no jogo, mesmo tendencialmente subjectivo, a consciência das coisas é renovar a infância. A pintura pode ter morrido, como quer o professor de Belas Artes, mas a arte continua a ser inseparável da personalidade individual e do coração do homem concreto. A escola não explica o artista. A sensação de ser estranho ao puzzle reconstituído por outro reforça essa ideia essencial. As leis deste novo método são por de mais ausentes, ou pelo menos tão ambíguas que não posso deixar de pensar que se experimenta ainda, sem a certeza de fugir com sucesso aos géneros.

Como conversação, reconheça-se a originalidade. O pintor é o centro do salão.


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