sexta-feira, 3 de outubro de 2008

A HUMANIDADE LIVRE DE SI MESMA


W.A.Mozart, aos 11 anos


"É frequentemente a impressão que temos ao atravessar todo o século XVIII: os seres humanos estão ali, como que privados da humanidade e, por assim dizer, desligados dela. A concentração da sua liberdade é tal, que ela parece estar eternamente avançada relativamente a nós. Oiçam Mozart: isto compreende-se imediatamente. O mesmo efeito de golpe de ar ao lermos Casanova. Se ele tem razão e se o provou, nove décimos das ruminações humanas irão desabar. Decidimos, então, que ele se vangloriava. Mas nada é menos certo."

"Casanova, o admirável" (Philippe Sollers)


Livres como quem se solta, como quem sai duma prisão tendo ainda no corpo a forma das grades. Livres, como se diz, da própria humanidade que é a origem dos deuses.

Foi este século que criou o mundo moderno, não dum golpe, nem em sete dias, demiurgicamente, mas como quem submete tudo a exame para tomar posse duma herança (Ramalho chamou-lhe o século da análise).

As artes parecem não ter anunciado esta revolução. Mozart é o encontro da forma clássica e desse espírito livre, que às vezes nos parece ligeiro, e em Casanova, libertino. Mas o motto do veneziano era "Sequere Deum", seguir Deus e, até ao fim, julgou-se perseguido pelos jacobinos.

São dois exemplos do pensamento não sistemático. É difícil, às vezes, fazer sentido das suas contradições. A música divina, como um país para onde um emigrava com a intransigência artística de um Morel (Proust) e a mesma inconsequência numa correspondência infantil, escatológica.

O cavaleiro de Seingalt, esse, diz detestar a morte "porque ela destrói a razão". Estranho. A vida é aqui identificada à razão, o que é muito do seu século. Do mesmo passo, o seu donjuanismo feliz se reivindica da racionalidade. Porque é conforme à vontade de Deus...

De qualquer modo, esta liberdade tão "eternamente avançada relativamente a nós", como diz Sollers, é solidária de um sujeito que não começou ainda o seu próprio processo. A teologia foi destronada, mas não a metafísica do eu.

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