sábado, 31 de dezembro de 2011
O CERCO
Um livrinho que me chegou às mãos
sobre a URSS da década de 50, depois da morte de Staline, veio 'nuançar' a
ideia de um regime condenado a falhar por assentar numa ditadura de burocratas
incompetentes (tese que devia ser comparada com a da competência dos banqueiros
na presente crise). O caso da China está aí como contra-exemplo.
Em 1959, data de publicação da resenha
de Jean Marabini, a URSS vivia um momento de optimismo geral (era o tempo em
que parecia possível ultrapassar os EUA), com realizações espectaculares em
vários domínios e um relativo abrandamento da repressão política. Nada fazia
adivinhar a mais célebre das implosões, apenas três décadas depois.
Apesar disso, podemos hoje pensar que
foi o próprio triunfo do sistema, e o desenvolvimento económico e social que
possibilitou, a ditar o seu destino. As tensões políticas e a questão das
nacionalidades tornaram-se problemas incomportáveis fora da ditadura mais
estrita. Staline, nessa via, tinha ido tão longe quanto era possível e a
experiência não podia ser repetida. Gorbatchev foi o homem que oficialmente
abriu uma caixa de Pandora que já tinha sido aberta pelas mudanças na sociedade
soviética.
Um dos argumentos mais utilizados
pelos que ainda "nāo fizeram o luto" é o de que a queda da URSS se
ficou a dever ao que chamam de "cerco capitalista". E é um argumento
aceitável se o libertarmos duma certa paranóia. Porque a competição com os EUA,
em matéria de armamento e na corrida espacial, representava um peso colossal na
economia do país. Mas, ironicamente, o desenvolvimento que esse esforço na
realidade travou foi, na verdade, mais uma moratória para o regime.
sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
OS PRINCÍPIOS
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(René Descartes) |
"(...)
a metafísica pode não resolver problemas, mas é necessária para manter vivas as
questões do sentido."
(Odo Marquard)
É o mesmo filósofo que afirma que o
cepticismo não é "a apoteose da
perplexidade; é simplesmente um obrigatório adeus às questões de princípio."
("Farewell to principles")
Isto por uma razão muito prosaica. Não
temos tempo para mudar, de acordo com os princípios. Mas podemos ter tradições
que tornem alguns princípios congeniais.
Quando rompemos com as tradições,
somos levados inevitavelmente ao cepticismo (e à ausência de princípios) se não
formos tomados por outra crença.
O homem "desenraizado" da
tradição está como "peixe na água" num meio social em que tudo
circula, pessoas, ideias e mercadorias.
Se aplicarmos esta ideia de cepticismo
a Descartes, o que vemos é o estabelecimento dum novo princípio ( o Cogito ) em
prejuízo da tradição.
Perplexidade é que não é o caso. o
Príncipe dos filósofos, como lhe chamava Alain, conquistou o mundo moderno com
passo militar, mas sem inquietar as catacumbas da razão.
quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
LENINE INCOMPREENDIDO
"Em
7 de Março, no VII Congresso do Partido, Lenine anuncia àqueles que o acusam de
derrotismo, "uma desforra para breve, quando o Exército do povo tiver
aprendido o seu ofício."
("URSS",
Jean Marabini)
Uma pausa para respirar era necessária
para reorganizar o caos em que a guerra e a Revolução tinham lançado o país.
Foi isso que significou a paz de Brest-Litovsk, de Março de 1918. "É o momento em que dezenas de milhões
de Russos considera Lenine como um traidor, e em que se forja no segredo das
consciências, seja a vontade de emigrar, seja a de retomar as armas."(ibidem)
A locomotiva da Revolução pede mais e
mais combustível. Depois do golpe dos "socialistas revolucionários",
com o assassinato do embaixador alemão e do atentado a Oulianov, o partido
bolchevique reforça a sua posição, tanto no interior como além fronteiras, mas
à custa de se tornar o túmulo da Revolução: "dominando
os homens, o Partido moldado por Lenine afirma o seu poder abstracto,
impessoal. Todos os fundamentos da URSS moderna se encontram reunidos, os quais
foram estabelecidos na crueldade e no heroísmo, no desprezo do indivíduo como
no sofrimento de todo um povo para a sua própria superação." (ibidem)
A 'posteriori' é demasiado fácil dizer
que a empresa estava votada ao fracasso. A longo prazo, sabemos que foi
condenado como regime e como sistema mundial, mas, como ideia utópica de
justiça universal, isso aconteceu muito antes, logo desde os primeiros triunfos
do sistema. Nem é justo desvalorizar o heroísmo e a generosidade dos que se
atiraram para a fornalha da "locomotiva". Não foram ingénuos como os
que o são quando podiam saber. A Revolução de Outubro, ela própria, é que fez
das revoluções futuras uma ilusão perigosa.
Há quem diga que a Revolução Francesa
foi a única revolução. Se não se tiraram todas as lições desse fenómeno 'horribile dictu', é porque,
supostamente, essa revolução triunfou no regime actual e a sua história é a
história do poder (e dos seus esqueletos).
A impaciência dos acusadores de Lenine
só prova que não viam tão longe quanto ele o que era preciso fazer para salvar
o poder. Marabini diz que outros
tentaram seguir os mesmos procedimentos do chefe bolchevique e falharam, por
lhes faltar o apoio popular. Caso para dizer que, também aqui, o desespero não é bom conselheiro.
quarta-feira, 28 de dezembro de 2011
ATRÁS DO COELHO BRANCO
"Escolhes
a pílula azul e tudo pára. Depois poderás sonhar belos sonhos e fazer o que
quiseres. Escolhes a pílula vermelha: continuas no País das Maravilhas e desces
com o coelho branco até ao fundo do abismo."
"Matrix"
(1999, Larry & Harry Wachowski)
Não há verdadeiras alternativas no
mundo da utopia. Aqui o dilema é quimicamente puro. Pílula azul ou pílula
vermelha.
O que torna as coisas menos simples (
porque aparentemente saímos do domínio da ficção ), é que, para muitos, o
dilema já se põe nesses termos e que o "natural" (contra o que
exemplos como esse se inscrevem) não se
encontra em lado nenhum.
No outro dia, vi o filme de Werner
Herzog sobre um rapaz que se curou da droga e da bebida junto dos
"grizzly" do Alaska. Treadwell, de seu nome, viveu durante uma década
a sua alucinação naturalista com os perigosos animais.
Por fim, como ele, no fundo, talvez
desejasse, foi comido por um urso solitário.
Também Treadwell tinha escolhido
refugiar-se no País das Maravilhas.
terça-feira, 27 de dezembro de 2011
A PEÇA ERRADA
"Qualquer
ciência social que não ensine que as construções sociais racionais são
impossíveis ignora totalmente os factos mais importantes da vida social e fecha
forçosamente os olhos às únicas leis sociais realmente válidas e realmente
importantes."
"A
Pobreza do Historicismo" (Karl Popper)
Essas leis seriam as leis do
desenvolvimento. Não podemos antecipar o desenvolvimento porque não podemos
prever o que é novo, muito menos numa sociedade euforicamente criativa como a
nossa.
Imagino (hipótese absurda, é claro) que
o ministro das Finanças poderia responder aos keynesianos e aos críticos à sua
esquerda que, precisamente, por não ignorar as leis do desenvolvimento social,
é que prevê uma saída para a crise que não é inteiramente racional e poderia
ainda perguntar quem, quanto ao futuro, se encontraria mais credenciado do que
ele próprio?
A moral da história é que serão os
factos do futuro, e só eles, a julgar a sua política.
Mas verificar-se-á, provavelmente,
este fenómeno curioso: o sucesso terá sido obtido apesar do modelo inadequado
(não racional?) e, mais uma vez, como acontece na história dos homens, todos os
actores em cena farão parte duma peça que não será aquela que julgavam
representar .
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
PARAR PARA PENSAR
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(projectglobalgeneration.com) |
"(...)
é preciso ser indulgente com a juventude, dizia-se ele, tornamo-nos alguém
completamente impossível quando nos limitamos a negá-la."
"O Homem
Sem Qualidades" (Robert Musil)
O pensamento é de Arnheim, o homem que
quer conciliar a cultura com o lucro. Na sua posição de homem extremamente
rico, isso parece-lhe possível, e até natural.
Não sei se a juventude, ao criar as
suas ideias, pode ser "pacífica" em relação ao adquirido pelas
gerações anteriores, nem se estas podem permitir-se não serem
"impossíveis", com uma
resistência que, essa, sim, parece natural.
Um dos problemas da nossa cultura é
que os velhos, até certo ponto, se renderam ao futuro, e cem anos de
"ética publicitária" aproximaram essa atitude da quase adulação dos
indecisos valores da juventude.
O confronto dos novos com o passado
faz parte do nosso processo de adaptação. Mas,
à medida que as mudanças se aceleram, graças ao efeito exponencial sobre
as nossas vidas da tecnologia e das comunicações, estamos perto da situação em
que os velhos são cada vez mais novos e os novos cada vez mais velhos.
E não se pode parar para pensar...
domingo, 25 de dezembro de 2011
O PRIMEIRO INDIVÍDUO
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Ulisses e Polífemo |
É quase sobre-humana esta capacidade
de Ulisses. No momento do perigo, temos de confiar mais nos instintos, e a
maior parte das vezes nem nos é dado o tempo de reflectir.
Ulisses prefere passar por cobarde, e
preparar as forças e os estratagemas.
Nasceu para enganar os mais simples e ingénuos, como Polífemo.
O espírito retira-se para encontrar a
ordem e a harmonia, o domínio da linguagem e da memória. Marvin Minsky diz que,
no momento em que pensamos, não sabemos como pensamos e, logo, que não se pode falar duma
verdadeira consciência. A comparação com a máquina (embora mais complexa do que
todas as que podemos construir) está sempre presente.
O certo é que a abertura ao mundo
produz o efeito duma sobre-exposição fotográfica no pensamento
"coincidente", o qual tende a transformar-se num epifenómeno dos
sentidos. Só pensamos fora da experiência e depois dela (como a Minerva de
Hegel).
Ulisses é o primeiro indivíduo (no sentido moderno), antes
do individualismo.
sábado, 24 de dezembro de 2011
O CHOURIÇO
"-
Ainda o apanhamos!
Os
dois amigos lançaram o passo, largamente, e Carlos que arrojara o charuto, ia
dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:
-
Que raiva ter esquecido o paiosinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a
teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço,
correr com ânsia para coisa alguma..."
"Os
Maias" (Eça de Queirós)
Toda a gente reconhece esta passagem
do final do romance. Os dois amigos correm para o "americano", ao
mesmo tempo que Carlos declara não valer a pena correr para coisa nenhuma.
De todos os grandes projectos do Maia,
e apesar de todos os seus privilégios, contra todos os seus pergaminhos,
salva-se o chouriço. A tragédia incestuosa desmoralizou-o completamente, mas a
necessidade de recolher ainda o leva a fazer uma corrida.
É o fim de toda uma época. Faz lembrar
o mundo provinciano de Tchekov, antes da Revolução. Toda esta gente tem a ideia
que merecia mais da vida, mas o que os confirma, pelo contrário, no destino que
lhes coube é a sua visível vontade de decadência.
A atmosfera risonha da primeira parte,
em que a pena de Eça descobre uma fundamental vacuidade, é a preparação da
queda inexorável duma classe social.
Qualquer paralelo com a situação que
vivemos hoje é abusiva. Não existem, agora, classes moribundas, nem
pergaminhos, nem projectos que se possam dizer da nação ( a não ser, talvez, o
duma Europa que o não sabe ser)
Pelo que, parece não haver motivo
nenhum para nos sentirmos desmoralizados...
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
OS VISIONÁRIOS DE SOLARIS
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"Solaris" (1972, Andrei Tarkowsky) |
O desespero de Burton, em
"Solaris", de Tarkowsky, por não conseguir transmitir aos
"terrestres" a sua experiência ( o seu relatório sobre as suas
visões tornou-se tema de chacota), não é
o mesmo do crente no meio dos cépticos ou dos indiferentes.
O filme que ele submeteu ao conselho
de peritos que julgou o caso foi o melhor argumento contra a sua versão dos
factos. Ele tinha "apenas" filmado nuvens, mas não foram nuvens que
vira. A sentença não se fez esperar: influência do campo magnético de Solaris
associada a uma depressão psíquica. Ninguém pensou que a humanidade encontrara
uma nova fronteira.
Alguns anos depois, perante o impasse
do projecto, prepara-se uma nova missão para avaliar a situação. Kris Kevin (um
psicológo!) viajará até ao "planeta oceânico", mas ele próprio
sucumbirá às alucinações sofridas por Burton.
Podia comparar-se a situação de Burton
à do primeiro crente em Deus. Imagina-se que, tal como a linguagem natural não
pode ter sido fundada pelo indivíduo, tampouco a religião o pode. O crente,
mesmo sozinho, faz parte duma comunidade que não precisa de estabelecer as
provas de existência do seu deus, nem criar um facto linguístico novo.
Burton, pelo seu lado, só tem a sua
verdade, "verdade em que ninguém crê". E a angústia dessa situação
faz dele um exilado da convivência humana. A missão transformou-o num
extra-terrestre.
quinta-feira, 22 de dezembro de 2011
A "ÚLTIMA" ARMA
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"Train to nowhere" (ustrainsnow.com) |
A relação de forças na CP está em vias
de mudar. Os homens que põem a andar os comboios estiveram sempre tão
conscientes do seu poder de parar a empresa, (o que é relativamente fácil para
um grupo tão pequeno e especializado), que os gestores da CP devem ter tido de contar
como despesa corrente cada greve dos maquinistas e a mímica duma resistência
pro-forma para se justificarem perante o governo, já que se trata duma empresa
pública (ou, mais eufemisticamente falando, duma Entidade Pública Empresarial).
Um sintoma dessa mudança, para além da
política austeritária que nos está a ser imposta, foi a interpretação que o
respectivo sindicato se viu na obrigação de prestar ( mais para os seus
associados do que para o público em geral ) perante o anunciado atraso no
pagamento dos salários de Dezembro. Em resumo, em vez de se justificar mais uma
greve, tentou-se afastar qualquer hipótese da empresa se encontrar em
dificuldade, dando-se como adquirido que
os défices estarão sempre, por natureza, cobertos pelo orçamento do Estado.
Não há nenhuma organização, seja ela a
mais necessária e de maior interesse público, como é o caso dos sindicatos, com
o seu, devidamente regulado, direito à greve, que esteja livre de ultrapassar um limite que pode
ser legal ou de simples bom-senso.
Pois uma coisa a que é difícil
resistir é a de usar todo o poder que se tem para obter vantagens para si
próprio ou para os seus. Não se espera, por isso, que a força das organizações
se auto-contenha virtuosamente. Compete à lei fixar os limites e fazê-los cumprir.
É óbvio que o Estado falhou no caso da
CP e que o poder dum dos sindicatos da empresa ultrapassou os limites do razoável. Em Portugal, os trabalhadores têm tão poucas vezes oportunidade de abusar do seu poder, sendo quase sempre o contrário que acontece, que este exemplo não pode ser edificante para ninguém.
quarta-feira, 21 de dezembro de 2011
LITURGIAS
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iconostase |
"Assim,
tinham criado entre eles uma espécie de simpatia que residia principalmente na
forma das suas relações; mas as formas têm influência sobre o interior; e os
sentimentos de que são feitas podem de igual modo ser despertados por
elas."
"O Homem
Sem Qualidades" (Robert Musil)
O homem que mima a piedade, sem
premeditação, é já piedoso. Alain chamava a atenção para a sabedoria da Igreja
que, em vez de pedir a crença, começa por pedir a atitude. É como nos
casamentos sem amor que se transformam pela convivência.
Muitos dos ateus que assistem, por
exemplo, ao ofício de defuntos são mais crentes do que gostariam de pensar...
Para a Igreja Ortodoxa, o Cristianismo
é uma religião litúrgica. Primeiro, louva-se a Deus segundo as formas. A importância
da doutrina é secundária. Em comparação, em certos períodos da sua história, a
Igreja Católica serviu-se da doutrina como arma de poder e de exclusão.
A força do "serviço", ou
"função pública" (leitourgía)
vai muito para além da religião. A reunião da família à volta da televisão é um
exemplo: ajudou à passagem da palavra para a imagem e à destituição do
"pater".
terça-feira, 20 de dezembro de 2011
FANTOMAS
Daquela vez, na banheira, pensei em
Fantomas e no seu crime por sugestão. A vítima, amarrada a uma cadeira, sente
fugir-lhe um fio de sangue pelo braço. Uma venda impede-a de perceber que o
facínora tinha aberto a torneira de água quente. A via do tratamento pela água
para o crime perfeito.
A criminologia do herói de Pierre
Souvestre e Marcel Alain é um Kama Sutra. O inspector Jouve, a antítese
fraterna, é o factor velocidade. Por sua causa, o bandido imagina os golpes
mais audazes e fulgurantes. Há quase uma contiguidade física entre o criminoso
e o justiceiro, este falhando o outro por segundos. É a quase metamorfose: O
Dr. Jekyll falha o encontro com Mr. Hyde, isto é, consigo mesmo.
Lady Beltham não é uma clandestina,
mas uma urna de vidro. Essa figura que se anima pela única vontade de Fantomas
é a bela adormecida. Fandor, nome de ressonância eslava, é o comentário do
génio. Para não se dissolver na música, a acção trágica cinde-se na fala
magistral e no sentimento de assombro.
Fantomas é apresentado como uma
criatura diabólica. Na sua natureza, há o insondável do psíquico, organizado
como um segredo portador de morte.
A máquina do prazer em Sade é um jogo
infinito. A morte, como mostrou Barthes, é contrária à economia do
castelo-refúgio. Mas Fantomas tem o mundo debaixo da sua sombra. O seu prazer
não olha a gastos. E a morte é o último fetiche duma lógica poética que não põe
fim à vida, nem se alimenta da nossa angústia.
segunda-feira, 19 de dezembro de 2011
DAS JANELAS DE OPORTUNIDADE E DE OUTRAS JANELAS
"Este
é um daqueles casos em que o devedor tem poder sobre o credor."
(J.M. Keynes, sobre a dependência dos
EUA em relação aos seus devedores durante a 1a. Guerra Mundial, citado por Reinhard Blomert)
O dinheiro fácil corrompe, é certo,
porque não tem base económica e gera dependência, como aconteceu connosco que
utilizámos esses dinheiro para fomentar as exportações dos países que agora nos
querem impor a lei de Shylock, a da libra de carne tirada do nosso corpo.
Tiradas como a do vice-presidente da
bancada socialista, que já vê tremer as pernas da Alemanha, são basófias de
sapo antes de rebentar. Mas respondem às emoções mais profundas de certos
auditórios.
De
Poitiers, lugar duma célebre batalha em que o galo francês perdeu a
crista, contra o "Príncipe Negro", no século XIV, o
homem talvez mais odiado por metade de Portugal, cometeu uma "gaffe" política na qualidade de
particular, e julgou-se obrigado a justificar-se diante do tribunal mediático.
O "frisson" não distraiu ninguém das malfeitorias que estão a ser
feitas para o bem de todos.
Mas a frase de Keynes não deixa de ser
actualíssima. À medida que a inoperância dos líderes da UE transfere poder para
os coveiros do euro ( a que se juntou, por despeito, a "pérfida
Albion", com o seu plano de emergência para os súbditos em Espanha e
Portugal ), são também mais visíveis as consequências desastrosas para todo o
mundo, sem mercê para os próprios credores. E sabe-se por que triste razão as
janelas de alguns arranha-céus de Nova Iorque ficaram famosas.
Se este não é um caso que pede a união
dos devedores para fazer valer a interdependência de uns e outros, longe de
qualquer retórica sobre a virtude e o vício dos povos (afinal para cada corrompido há sempre um
corruptor), resta-nos esperar (sentados) pelos émulos pátrios dos burgueses de
Calais que propuseram ao pai daquele Príncipe Negro, em troca das suas vidas,
que a cidade fosse poupada.
domingo, 18 de dezembro de 2011
A HUMILDADE SOCRÁTICA
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khaledallen.wordpress.com |
"Se
já sabes tudo, não fales,
mantém-te em silêncio;
se já sabes tudo, não ajas, mantém-te
quieto."
"Uma
viagem à Índia" (Gonçalo M. Tavares)
É o que diz a sabedoria antiga. E é
como se só o erro e as paixões fossem combustível para o motor da história e
para o destino da humanidade.
A planície onde se encontra Er, no
mito de Platão, é o lugar onde tudo se repete, e as almas, de facto, não
escolhem vida futura nenhuma. Quanto mais se conhece a trama em que nos
enredamos, com mais razões nos deparamos para não agir e permanecer em
silêncio. Só mesmo a ideia dum Deus pessoal, que acolhemos no segredo da
intimidade, podia resolver este paradoxo de não sabermos nada e agirmos como se
soubéssemos tudo.
Não se pode viver, é certo, na
quietude e na anulação de todas as nossas forças, enquanto elas existem.
Por isso, a história de S. Francisco
ou a de Santo Agostinho são exemplares. Porque primeiro "erraram"
abundantemente. E só depois encontraram a sabedoria.
A história de qualquer povo mostra-nos
a "malha" em que esse povo é tecido e como a força das suas ilusões é essencial para qualquer movimento.
A maior das astúcias da razão é a
humildade socrática. Saber que não sabemos abre-nos o mundo.
sábado, 17 de dezembro de 2011
O FOGUETÃO PLATÓNICO
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A igreja de S. Simpliciano, em Milão |
"Simpliciano
elogiou-me por eu não ter tropeçado nos escritos de outros filósofos, cheios de
falácias e engano, 'atrás dos miseráveis elementos deste mundo', enquanto que
nos Platonistas, a cada volta, o caminho leva à fé em Deus e na sua Palavra."
"Confissões"
( Santo Agostinho)
É o maior filósofo da Igreja que
"recupera" para o Cristianismo, um Platão precursor, espécie de
Baptista a anunciar a vinda de outro maior do que ele.
Com isso, não fez mais do que outros
doutrinários, estabelecendo, 'a posteriori', as origens remotas de, por
exemplo, o materialismo.
Mas a teoria das Ideias platónicas,
fazendo deste mundo e dos seus "miseráveis elementos" uma aparência
da realidade de que só o filósofo que emergiu da célebre Caverna pode ter a
experiência "ofuscante" (pois a partir dela fica incapaz de ver o
mundo como era dantes - é verdade que recebe, ao mesmo tempo, uma missão de
libertar os outros e de se habituar de novo às sombras), é fundamental para a
separação entre a Igreja e o mundo.
A Natureza não seria, então, uma
epifania, mas um lugar de exílio, e o próprio corpo uma prisão. Com a força de
propulsão de um foguetão, a filosofia grega fez descolar um cristianismo
incipiente, para o melhor e para o pior.
Tudo isto é problemático e, de certo
modo, exterior ao fenómeno religioso. A prova é que o "dolorismo" e a
"morte para o mundo" tiveram o seu tempo, mas são hoje temas menores.
Por isso a influência do platonismo,
se dotou a doutrina de alguns dos seus fundamentos filosóficos,
condicionou a vida religiosa num sentido
para fora do mundo que não saberíamos
dizer se faz parte da força ou da fraqueza da Igreja.
sexta-feira, 16 de dezembro de 2011
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