quarta-feira, 31 de agosto de 2011
UMA MORADA
O filme de Chantal
Akerman, “Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles” (1975), descreve
três dias da vida duma mulher (Delphine Seyrig) que vive com um filho estudante
que só aparece para jantar. As falas entre ambos reduzem-se ao essencial, salvo
à hora de se deitar, quando o rapaz dispara algumas questões incómodas sobre a
história dos pais e o sexo em geral. A mãe, que o ouve de pé levantado, põe fim
à conversa dizendo que não adianta nada falar sobre essas coisas. Estes são os
momentos “críticos” do filme, porque tudo o resto é a visualização pela câmara
fixa, da rotina doméstica, quase sem elipses. A repetição ordenada dos gestos é
sufocante, e não é que Jeanne se comporte como um autómato. Mas a eficiência
surge como o seu próprio objecto, e a interpretação de Delphine Seyrig não nos
permite supor que não haja até um prazer perverso naquele meticuloso vazio. O
que vemos não é a opressão da mulher sob o peso dos trabalhos de casa. Falta o carrasco
dessa opressão, que não é outro, neste caso, senão a neurose. Este trabalho que
não lhe deixa um minuto livre é, antes, um refúgio. Mas só funciona como tal se
conseguir expulsar o monólogo interior e manter à distância os sentimentos.
Ora, Jeanne tem como fonte de rendimento uma actividade inconfessável e só nas “conversas”
com o filho a consciência disso transparece na agressividade latente de algumas
perguntas. Ela recebe alguns homens no seu quarto quando está sozinha. Isso é
apenas mais um detalhe da rotina que se intercala nas outras tarefas. Mas ao
terceiro dia, o corpo rebela-se. Ela sente-se vaga e relaxada, tenta
distrair-se limpando alguns “bibelots”.
Infelizmente é a hora do terceiro cliente da história e o orgasmo é quase
inevitável. A tesoura que trouxera para abrir um embrulho serve-lhe para
assassinar o “intruso” que havia destruído a paz armada dos seus “nervos”. O
título do filme é uma morada, mas não vive lá ninguém. Jeanne tinha-se
suprimido atrás da tripla função de doméstica, mãe e prostituta.
terça-feira, 30 de agosto de 2011
O "FRANCHISING" DA BELEZA
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"That uncertain feeling" (1941), de Ernst Lubitsch |
“É
verdade que se encontra em cada época toda a espécie de rostos; mas, de cada
vez, o gosto do dia distingue um do qual fará o rosto da felicidade e da
beleza, e todos os outros rostos, a partir daí, se esforçarão por se lhe
assemelhar; mesmo os mais feios se aproximam, com a ajuda da moda e dos
cabeleireiros; e só nunca o alcançarão aqueles rostos, nascidos para estranhos
sucessos, em que se exprime sem concessão o ideal de beleza real, mas
destronado, duma época anterior.”
“O Homem Sem
Qualidades” (Robert Musil)
Lembram-se do começo
de “That uncertain feeling”, em que Sebastian (Burgess Meredith) pergunta a Mrs. Baker (Merle
Oberon), eleita com Mr. Baker (Melvin Douglas), como um casal feliz, o que é a
felicidade? Nós sabemos que bastaram as alusões dum psicólogo e de um pouco de espírito crítico induzido para
desfazer essa fachada.
Mas que dizer do
rosto da época, a não ser que as épocas são cada vez mais curtas e que essa
espécie de ideal que muda tão vertiginosamente já há muito deixou de ser fruto
do acaso e da adaptação espontânea para se tornar um “output” da grande máquina
das imagens? O que interessa, pois, não é esse encontro entre a ideologia e a
imagem, mas o que o faz abortar, a crise desse outro “franchising”.
segunda-feira, 29 de agosto de 2011
UM TRAVÃO ÀS QUATRO RODAS
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Leónidas Brejnev (1906/1982) |
“Tal
como em França em 1793, onde as secções e os distritos foram burocratizados
pela divisão de funções e a lassitude dos seccionistas, assim a maioria dos
militantes bolcheviques se tornou escrava do Estado Soviético por causa dum
emprego. Neste período de desemprego e privação, o cartão de membro do Partido
valia tanto como a segurança social. A selecção na base da fidelidade e da
capacidade deu lugar à promoção do carreirista.”
“Staline” (Boris Souvarine)
Nenhuma destas
dificuldades podia ser inesperada para as cabeças do partido, e em “cada Congresso e em cada conferência, as
mesmas frases, nunca traduzidas em factos, eram usadas para acalmar o mesmo
descontentamento.” O que começa, para muitos, no entusiasmo, com o tempo e
o cansaço acaba por parecer mais um embuste para sacrificar os mesmos de
sempre. “A ‘grande iniciativa’, saudada
por Lenine, do trabalho voluntário aos sábados, rapidamente degenerou em
trabalho compulsivo e admitiu-se ser uma ilusão.”
Os primeiros anos da
Revolução trouxeram, assim, a desorganização e a porção de caos que um corte
com o passado sempre engendra. Na altura, os bolcheviques não podiam saber a
que espécie de atrocidades deveriam mais tarde recorrer para assegurar o
controle das coisas. Era uma ilusão que hoje já não nos podemos permitir.
Tiveram que
aperfeiçoar a máquina do Estado nas suas funções mais repressivas. Pelo
caminho, perderam o espírito dos “fundadores”, obrigados que foram a justificar
os crimes com uma ideologia revista para o efeito.
Naturalmente, os
carreiristas chegaram aos postos de comando e limitaram-se a partir daí a gerir
um “status quo” que os privilegiava. Brejnev, que tanto gostava de carros de desporto, limitava-se a “travar às quatro rodas”, impedindo
qualquer mudança…
domingo, 28 de agosto de 2011
CARPE DIEM
"Não
se deve permitir aos desejos que sejam insolentes e tentar preenchê-los; isso é
um mal inextinguível e leva-se uma vida de ladrão."
(“Górgias” de
Platão, traduzido por Simone Weil)
A "doxa" (opinião) moderna
diz todo o contrário. Devemos seguir os nossos desejos até onde eles nos
levarem. Com uma restrição bem democrática: a de que não devemos impedir os
outros de fazer o mesmo.
Não é uma ideia nova, longe disso.
Horácio não aconselha outra coisa com o seu "carpe diem" ( aqui há uns anos, um filme de Peter Weir teve
com essa ideia um grande sucesso).
Se as "intimações" do desejo
são tão produtivas e socialmente eficazes é porque a sociedade de mercado não
pode viver sem ela. Ainda por cima, parece o contrário da repressão, o que lhe
dá um toque de humanismo. Mas já Pasolini dizia que obrigar a dizer é mais
repressivo do que a simples censura.
É por isso que a chamada austeridade
que nasceu dos excessos da ganância de alguns pode ser revolucionária...
sábado, 27 de agosto de 2011
AGOSTINHO E O SANTO NU
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S. Sebastião (Guido Reni) |
Agostinho
não se sentia ainda com forças para
desviar todo o caudal das suas energias para o ideal. Uns anos mais tarde,
reforçado pela doutrina e moderado pela idade, poderá servir de exemplo.
A
juventude de S. Sebastião é interrompida pelas setas e ele nunca conhecerá os
dilemas do autor das "Confissões". Não é por acaso que aquele soldado
na flor da idade é representado nu e sem
um gesto de defesa. É a sua virgindade que assim se exprime, o que lhe dá uma
ambiguidade sexual que agrada ao povo de Sodoma, para dizer como Proust.
Ao
contrário de S. Francisco que "pintou a manta" nos seus verdes anos e
do próprio Agostinho que tanto lutou contra o seu inimigo interior, o santo nu
parece ter sido escolhido pela graça e criado pelos seus inimigos de carne e
osso, apesar da lenda que o envolve num segundo martírio.
O
Agostinho que dirige a Deus um pedido de adiamento está mais próximo de nós e
esta santidade parece tão natural que podíamos facilmente tomá-la por sageza.
sexta-feira, 26 de agosto de 2011
OS NOSSOS INTERESSES
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http://www.profblog.org/2009/12 |
“Os
homens políticos têm muitas vezes o desagradável hábito de tratar de problemas
que eles consideram como devendo ser resolvidos, por vezes no mais estrito
interesse próprio, e de negligenciarem os nossos.”
“Principia
Rhetorica” (Michel Meyers)
O papel da retórica,
neste caso, é o de nos convencer de que os problemas deles são os nossos e de que
são prioritários. Claro que a partidirização das ideias e a doutrina do “tudo é
relativo” tornam impossível desmascarar o mentiroso.
A mentira, além
disso, casa-se tão bem com a política, em democracia (porque é preciso agradar
e “dourar a pílula” para ganhar votos), que a própria ideia de retirar a
máscara é absurda.
E quais são os nossos
interesses? São os da polícia, ou os dos professores? O Nuno Crato, crítico do “eduquês”,
pode ser o mesmo no governo?
quinta-feira, 25 de agosto de 2011
O HOMEM NÃO PRÁTICO
“Um
homem não prático (e este não tem só a aparência disso, mas é-o por natureza)
acaba por ser, no comércio dos homens, pouco seguro e indecifrável. Cometerá
acções que terão para ele todo um outro sentido que para os outros, mas
consolar-se-á do que quer que seja, por pouco que esse o quer que seja possa
ser resumido numa ideia excepcional. Para além disso, hoje, também, ele está
muito longe de ser totalmente
consequente. Assim, pode muito bem acontecer que um crime sofrido por um outro
que não ele lhe pareça apenas um erro social cujo responsável não é o
criminoso, mas a organização da sociedade.”
“O Homem Sem
Qualidades” (Robert Musil)
Felizmente que os
homens práticos que, ao contrário de Ulrich, são homens com qualidades que
servem para alguma coisa, nunca são inconsequentes, pela simples razão de que
se limitam a imitar-se uns aos outros.
A inconsequência de
que fala Musil é a dos princípios que mudam consoante o crime nos atinge (o que
pode desencadear uma reacção do cérebro reptiliano) ou atinge qualquer outro.
Mas como explica o autor, nesta crise do “império austro-húngaro” a braços com a modernidade é sobretudo a inteligência que
falha.
O dinamismo da nova
época já não dá tempo para pensar a novidade, para a criticar ou rejeitar, se
for preciso. Esse dinamismo impõe-nos a sua “agenda” e só nos resta limitar os
danos.
A transferência da
responsabilidade do criminoso para a sociedade é tão-só uma consequência dessa
falta de tempo para pensar. À medida que se desenvolve o estudo das
motivações e da influência do meio, mais
patente se torna que o castigo não tem um fundamento “científico” que sossegue
a nossa consciência. Assim, é preferível declararmo-nos nós os culpados, para
não sermos incoerentes com os nossos preconceitos.
quarta-feira, 24 de agosto de 2011
OS QUE SE SALVAM
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André Malraux (1901/1976) |
André Malraux diz que
a Revolução (no seu tempo) desempenhava o mesmo papel que outrora a vida
eterna: salvava aqueles que a faziam.
Só isso explica, por
exemplo, que as vítimas dos processos de Moscovo, nos anos trinta, fossem
vítimas “consententes” e mártires aos seus próprios olhos.
A história
encarregou-se de “retirar o tapete” (ou o ascensor) a esses mártires e (salvo uns poucos) de tornar mais
conscientemente religiosos os que se querem salvar.
Mas a ideia da
Revolução não morreu. Deixou só de ter conteúdo. Para dizer a verdade, é uma
ideia quase só negativa. Só sabemos que este sistema se condena a si próprio.
terça-feira, 23 de agosto de 2011
CRENÇAS COMUNS
“Quando
um debate se desloca para aqueles que nele participam, mais o logos subjectiviza a implicação, o
valor (que, mais do que da validade de um argumento, traduz a comunidade de
crenças e de emoções que aí participam) e a qualidade (o ‘quem fala?’ importa
mais do que ‘o que é que se diz?’). A distância ela mesma é o seu próprio
objecto. Num tal contexto, a desqualificação do oponente leva a melhor sobre a
refutação do seu argumento, tal como, para o pathos, aquilo que se sente passa à
frente em relação ao juízo de adequação das respostas. Pelo contrário, quanto
mais a argumentação é ad
rem, mais as
noções de implicação, de qualificação e de valor se dirigem para os próprios
argumentos.”
“Principia
Rhetorica” (Michel Meyer)
Todos os dias podemos
assistir nos debates da televisão ao momento em que os argumentos se tornam um “corpo
a corpo”, referindo-se às pessoas envolvidas. Basta uma ponta de humor para o ad rem
se transformar em ad
hominem. Por isso, a táctica de cobrir a voz do outro ou
de o interromper não pretende mais do que “desqualificar o adversário”, em vez
de lhe responder.
Ora, são precisamente
estes momentos que tornam os debates interessantes para a maior parte dos
espectadores, e que são televisão. A ideia de que as pessoas acendem o aparelho
para escolher a mais bem justificada das opções é ingénua. Só aqueles que não
sabem “para que lado cair” é que procuram o simpático imponderável que, à
semelhança dum lance de dados, os ajude a decidir.
O espectáculo de um debate
deve sempre ser distinguido de um debate, porque tem outras regras. É ainda a “comunidade
de crenças e de emoções” que está em causa, em vez da validade dos argumentos,
mas o espectador não se envolve.
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