“As
dificuldades que se fizeram sentir em Florença são as mesmas que foram sentidas
em todas as cidades com a mesma origem; e apesar de, repetidamente, pelo voto
livre e público dos seus cidadãos, uma ampla autoridade tivesse sido dada a um
pequeno número dos seus para reformar a sua constituição, nenhuma alteração de
utilidade geral foi alguma vez introduzida, mas tão-só as que fizeram avançar
os interesses do partido a que aqueles encarregados de fazer as mudanças
pertenciam. Isto, em vez de ordem, ocasionou a maior desordem na nossa cidade.”
“Discursos
sobre a primeira década de Tito Lívio” (Nicolau Maquiavel)
Como o dos
florentinos da época, o voto popular é, entre nós, “livre e público”, mas isso serve apenas para
bloquear as mudanças de interesse geral e legislar a favor da parte mais
influente de um ou outro partido no poder (porque é preciso distinguir as
elites partidárias e os ocultos “encenadores da peça”, por um lado, da massa
dos que votam nesses partidos por sedução ideológica e contra os seus
interesses reais.). Com a grande diferença, em relação ao tempo de Maquiavel,
de que existe, agora, um outro tipo de consenso.
A democracia, ainda assim,
é o “menos mau dos regimes”, mas é preciso conceber uma qualquer necessidade
para esta perpétua mistificação. Por que é que as mudanças de interesse geral
não são sempre o resultado da votação livre dos cidadãos?
Posso imaginar uma
fábula, como a de Menénio Agripa, para explicar por que é que tem de ser assim.
Os diferentes interesses corresponderiam a “órgãos” diferentes e não se pode pôr,
por exemplo, a barriga a dirigir a
cabeça. Isto seria uma fábula muito conveniente para os que aproveitam da
mistificação. A sociedade sem classes,
neste contexto, funcionaria como um outro
“ópio do povo”, mais requintado, mas não é assim que as coisas se passam. A
cultura da democracia moderna não aspira à sociedade sem classes, mas à
felicidade geral pela via do consumo. O poder só se mostra “anti-democrático” e
o consenso só se desfaz quando a “economia” levanta a sua terrível cauda… Economia
que não é mais do que o “status quo” que produz a mistificação.
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