“As insuficiências e perversões que a Democracia Portuguesa manifesta não resultaram do modelo constitucional, mas da forma sistematicamente parcelar e viciada com que os numerosos órgãos e agentes políticos têm interpretado e cumprido os seus deveres constitucionais, aproveitando-se da fraca vigilância e da reduzida participação de todos nós.”
(Do “Ciclo de
reflexões e debates relativo ao tema ‘aprofundamento da democracia’” da
Associação 25 de Abril e do Movimento 12 de Março)
Maria Filomena Mónica
conta no “Expresso” como conseguiu intimidar um agente da ordem que lhe queria
aplicar uma multa, acusando o seu comportamento de anti-constitucional. Ela não
sabia se era ou não constitucional, o que importa é que funcionou.
O exemplo poderia servir para
caracterizar o que a constituição não deve ser. Porque se a constituição “desce”
às multas de trânsito e ao provável excesso de zelo de um polícia é porque,
pelo menos na cabeça de algumas pessoas, ela é uma espécie de modelo de justiça que serve
para tudo. Independentemente do seu conteúdo, é o aspecto "tutelar" (para outros, negativo e simplesmente "ideológico", sem dúvida) da Constituição que é subjectivamente relevante.
A nossa
Constituição vai, talvez, para além dos princípios gerais
e das limitações que deveria estabelecer. Na sua ambição de impedir um
retrocesso e de criar as condições duma sociedade que consideravam mais justa,
os que a fizeram parecem ter pretendido
garantir-se contra o futuro, como se o que está escrito tivesse força para
substituir-se à realidade. E a “décalage”
é tanto maior quanto mais "positivos" são os preceitos constitucionais.
Ao contrário da
constituição de Florença, de que fala Maquiavel (no “Discurso sobre a Primeira Década de Tito Lívio”), a qual nunca
deixou de reflectir a relação de forças desfavorável à maioria (disso se
encarregavam os membros do partido no poder livremente eleitos por essa mesma
maioria), a nossa Constituição representa o “wishful
thinking” dum poder popular que chegou a pensar-se real e duradouro.
É natural, assim, que
o curso dos acontecimentos posteriores, que releva da verdadeira relação de
forças, possa ainda ser visto, por alguns, como a interpretação viciada “dos numerosos órgãos e agentes políticos”
e o resultado da “nossa falta de
vigilância” e “reduzida participação”.
Percebe-se nesta linguagem o estilo “unitário” dum compromisso político, mas se
a mesma fosse traduzida no “vernáculo” partidário, o impasse do seu irrealismo
seria tão patente como a nossa indiferença.
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