domingo, 7 de agosto de 2011

A JUSTIÇA NA CONSTITUIÇÃO



“As insuficiências e perversões que a Democracia Portuguesa manifesta não resultaram do modelo constitucional, mas da forma sistematicamente parcelar e viciada com que os numerosos órgãos e agentes políticos têm interpretado e cumprido os seus deveres constitucionais, aproveitando-se da fraca vigilância e da reduzida participação de todos nós.”


(Do “Ciclo de reflexões e debates relativo ao tema ‘aprofundamento da democracia’” da Associação 25 de Abril e do Movimento 12 de Março)




Maria Filomena Mónica conta no “Expresso” como conseguiu intimidar um agente da ordem que lhe queria aplicar uma multa, acusando o seu comportamento de anti-constitucional. Ela não sabia se era ou não constitucional, o que importa é que funcionou.

O exemplo poderia servir para caracterizar o que a constituição não deve ser. Porque se a constituição “desce” às multas de trânsito e ao provável excesso de zelo de um polícia é porque, pelo menos na cabeça de algumas pessoas, ela  é uma espécie de modelo de justiça que serve para tudo. Independentemente do seu conteúdo, é o aspecto "tutelar" (para outros, negativo e simplesmente "ideológico", sem dúvida) da Constituição que é subjectivamente relevante.

A nossa Constituição vai, talvez, para além dos princípios gerais e das limitações que deveria estabelecer. Na sua ambição de impedir um retrocesso e de criar as condições duma sociedade que consideravam mais justa, os  que a fizeram parecem ter pretendido garantir-se contra o futuro, como se o que está escrito tivesse força para substituir-se à realidade. E a “décalage” é tanto maior quanto mais "positivos" são os preceitos constitucionais.

Ao contrário da constituição de Florença, de que fala Maquiavel (no “Discurso sobre a Primeira Década de Tito Lívio”), a qual nunca deixou de reflectir a relação de forças desfavorável à maioria (disso se encarregavam os membros do partido no poder livremente eleitos por essa mesma maioria), a nossa Constituição representa o “wishful thinking” dum poder popular que chegou a pensar-se real e duradouro.

É natural, assim, que o curso dos acontecimentos posteriores, que releva da verdadeira relação de forças, possa ainda ser visto, por alguns, como a interpretação viciada “dos numerosos órgãos e agentes políticos” e o resultado da “nossa falta de vigilância” e “reduzida participação”. Percebe-se nesta linguagem o estilo “unitário” dum compromisso político, mas se a mesma fosse traduzida no “vernáculo” partidário, o impasse do seu irrealismo seria tão patente como a nossa indiferença.

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