quinta-feira, 31 de março de 2011
JÚPITER ENLOUQUECE AQUELES...
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"Coniuratus deus ex machina" (Giovanni Greco)
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"Deus não dá olhos a quem vive no escuro(...)"
(Gonçalo Tavares, Visão 24/3/2011)
Outra maneira de dizer é a famosa expressão
"Júpiter enlouquece aqueles que quer perder" (Quos vult
perdere, Jupiter dementat"). Podemos, como Ajax, tomar um rebanho por
uma falange de troianos, só para sermos castigados (mesmo sem sabermos de quê).
Depois da crise desencadeada, os protagonistas
parecem ter perdido o norte, para o observador que se encontre minimamente fora
do psicodrama parlamentar. Mas a prova que Deus não lhes deu ainda os olhos nem
Júpiter lhes devolveu a razão é que repetem os mesmos gestos como se nada se
tivesse passado.
Pode perguntar-se, é claro, se essa tendência, no
fundo suicidária, é devida à clausura da nossa política ou se o psicodrama é
totalmente português. Veremos um pouco melhor nas próximas eleições.
Uma coisa parece certa: não há actores acima do
enredo e o "Deus ex machina" da Europa pode escangalhar-se.
quarta-feira, 30 de março de 2011
MAQUIAVELISMOS
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Charles-Maurice de Talleyrand |
“C’est plus qu’un crime, c’est
une faute!”
(Talleyrand,
a propósito da execução do Duque d’Enghien)
No salão de Ana
Pavlovna, a “falta” de Napoleão é tema de conversa logo no início de “Guerra e
Paz”. O aparente mau-gosto de Talleyrand tem origem na sua concepção do Estado.
É graças a ela que está pronto a compreender um crime, se necessário por razões
políticas, mas não a falta de inteligência no caminho da ambição. Claro que
isto tem a marca de Maquiavel.
Como diz Cassirer,
este teórico da política há muito deixou de ser uma das encarnações do Diabo,
sendo reconhecido, já desde os finais do século XVIII, o seu “realismo” e a sua
honestidade intelectual. É um erro, sem dúvida, julgar um Estado como uma
pessoa. E os que querem “cavalgar” os seus tentáculos têm que conhecer a
natureza do monstro.
Isto serve de
introdução a um comentário sobre a crise em que balouçamos e sobre alguns dos
seus protagonistas. É pensando naquela doutrina “realista” do Estado que me
sinto tentado a considerar o nosso Sócrates como um político maquiavélico,
capaz, por exemplo, como sugerem alguns “analistas”, de precipitar a crise,
desrespeitando um formalismo essencial (
na apresentação do PEC IV), para provocar eleições no momento mais favorável
para o partido com ele à frente.
Mas talvez o “crime”,
que neste caso é o agravamento das dificuldades dos portugueses seja, antes do
mais, uma “falta”, no sentido de Talleyrand. É que a sua ambição (legítima,
porque é melhor para todos que a política seja movida por uma paixão política,
como é a ambição do poder, do que pelo o
desejo de encher os bolsos ou o oportunismo das clientelas) expôs demasiado a
sua personalidade, a ponto de quase ninguém querer ver uma solução com ele,
pese embora o facto dos que vierem poderem não ter a mesma “fibra”.
Como no teatro, sai o político forte (mas
polémico) e entra, pela direita baixa, o “low
profile” adequado aos tempos de “apagada e vil tristeza”. O maquiavelismo
de Sócrates era ainda um sinal de vida. Espera-nos a cinza soprada do Norte.
Marcelo Rebelo de
Sousa é o porta-voz desse “bom-senso” anti-socrático. Mas como disseram ao
Cínico, vê-se bem, por detrás da “modéstia” da sua análise, a vaidade de transformar
uma oportunidade perdida (a sua proposta de aprovação do PEC, seguida de
eleições) em “necessidade”. Afinal não eram os sacrifícios pedidos que estavam
em causa, mas a antecipação de eleições. Mas talvez seja essa a “falta” do “challenger” da oposição.
terça-feira, 29 de março de 2011
POESIA
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"Poesia" (2010-Chang-dong Lee) |
Uma sexagenária, Soon-mi (Ahn
Nae-sang), com os primeiros sintomas de Alzheimer, toma conta dum neto obtuso num subúrbio de
Seul. A certa altura, decide inscrever-se num desses cursos para ocupar os
velhos e os desempregados, porque quer aprender a escrever um poema. Não é
fácil. A "inspiração" não cai do céu e os vizinhos não compreendem
que precise de falar com as árvores.
Entretanto, sabe que o neto faz parte
dum grupo da escola que violou uma colega, levando-a ao suicídio. Os pais
desses rapazes querem, para abafar o caso, dar uma indemnização à mãe da jovem.
Soon-mi não tem os 5 milhões que lhe pedem pela sua parte da indemnização e,
como último recurso, pede-os a um velho doente a quem fazia a higiene. Este
inválido fizera-lhe, tempos atrás, um pedido que a escandalizara: ajudá-lo
(mais um comprimido de Viagra) num último orgasmo "antes de morrer".
Mas depois o suicídio da jovem e o
progresso inexorável da sua própria doença fazem-na reflectir e ceder.
São todas estas peripécias que lhe permitem,
no fim, escrever o seu poema. Com a abertura de espírito para a "inspiração"
e o seu esforço de atenção dedicado à
natureza e ao quotidiano consegue encontrar a "graça" com que agiu
nalguns dos momentos mais difíceis da sua vida e, ao mesmo tempo fazer poesia.
Afinal, talvez esta seja, acima de
tudo, o sentimento duma experiência mais pura e decantada. E mesmo a forma não
é ingénua nem deixa de ser. É a forma perfeita para aquele coração.
segunda-feira, 28 de março de 2011
MILAGRES
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“Os
milagres só acontecem àqueles que acreditam neles.”
(Bernard
Berenson)
Todos começamos por
acreditar neles, porque a Física das crianças é algo de maravilhoso e só faz
sentido se os milagres acontecerem.
Um dos maiores sábios
da Antiguidade (Tales) dizia que “tudo
está cheio de deuses.” E acreditava tanto neles que se dispensava de olhar
para onde punha os pés.
O que se aproxima, em
nós, dessa ingenuidade é o que às vezes se chama de “abertura de espírito”. Mas
mesmo um espírito “aberto” não pode furtar-se ao domínio da Torre do Saber
Acumulado. É como diante de alguns espectáculos de prestidigitação, tão incríveis
que desafiam a imaginação. Não sabemos como é que se faz, mas pressupomos sempre
que se trata dum truque. Não há milagre (de resto os milagres não funcionam
como os espectáculos, com hora de começo e fecho).
Portanto, acreditar
em milagres não é fácil, mesmo que se queira muito. Porém, isso talvez não deva
ser considerado uma superioridade da nossa civilização, mas antes um dos seus
limites. Limitamo-nos para podermos ser mais previsíveis e controláveis.
domingo, 27 de março de 2011
O ABSURDO DA CULPA
Giuseppe Cesari-Adam and Eve expelled from | Paradise |
“O
sacrifício é a máquina cósmica que eleva a vida culposa à consciência.”
(Roberto
Calasso)
Que culpa é a de
Édipo, se fez tudo para que a profecia se não cumprisse, contribuindo assim,
por ironia do destino, para cair no laço da necessidade? Quando sabe que, apesar
dos seus esforços, acabou por cometer esses crimes, ele assume-os, e castiga-se
por isso. Nada de mais incompreensível para a mentalidade moderna.
Contudo, na etapa
seguinte, com o Cristianismo, deparamos com a mesma ideia, disfarçada sob o
fenómeno da culpa subjectiva. O que nos alerta para isso é a espantosa
desproporção entre a causa e as consequências. Cedendo à tentação da serpente,
a desobediência de Adão e Eva, no Génesis, é um acto que não pode explicar os
desastres e a maldição que se seguem, de
geração em geração.
As ondas de choque daquela
dentada na maçã fazem lembrar a teoria das catástrofes. Estão tão fora da
escala que somos obrigados a pensar que, tal como aconteceu com Édipo, o
primeiro casal de humanos, segundo a Bíblia, sentiu-se merecedor da condenação
eterna, independentemente da sua responsabilidade pessoal (à luz dos nossos
conceitos).
Que culpa, então, é
esta que o “sacrifício traz à consciência”? Kafka tem uma “explicação”. É que,
segundo o seu famoso absurdo, a Lei torna-nos a todos culpados.
sábado, 26 de março de 2011
O REVELADO E O OCULTO
“No
sistema medieval não havia lugar para o
racionalismo moderno, a tendência do pensamento que encontramos em Descartes,
Spinoza, Leibniz, ou nos ‘filósofos’ do século dezoito. Nenhum pensador
escolástico alguma vez seriamente duvidou da absoluta superioridade da verdade revelada.”
“The myth of the State” (Ernst Cassirer)
Para os escolásticos,
“a Razão não pode ser a sua própria luz.”
E Agostinho, citando Isaías, não diz outra coisa: “Se não acreditardes, não compreendereis.”
Kant não pôs todos os
pontos nos ii, porque a seguir a ele, o “racionalismo moderno” atingiu o estado
de absoluta independência, com Hegel.
É verdade que a
situação de hoje não é essa. Compreendemos que os interesses (os vitais, os
psicológicos, para não falar dos económicos) “subsidiam”, por detrás da
cortina, a deusa aparentemente despreocupada e isenta, e até o seu pedestal.
Convivemos com doutrinas que reconhecem a promiscuidade entre os interesses e a
razão, como a das garantias de objectividade jornalística, ou a velha
interdição de ser juiz em causa própria, mas em relação à Ciência, por exemplo,
continuamos a idealizar as suas “condições de produção”, aceitando como prova
suficiente a sua eficácia técnica.
Nesse sentido, a
verdade “revelada”, em última análise, um texto sacralizado, mas conhecido,
estava mais adiantada.
sexta-feira, 25 de março de 2011
A OBSERVAÇÃO DO UMBIGO
“A
auto-observação é então menos arbitrária e menos informativa do que a
observação estranha, o que não deixará de ser significativo para a semântica
própria do ‘Estado’. Ela é menos arbitrária na medida em que utiliza as
operações do sistema para a própria observação, e não pode por isso dispor à
vontade das suas condições de mobilização. (…) Um observador estranho, pelo
contrário, poderá perfilar tais sistema a partir do que neles está latente,
quer dizer, por exemplo, observá-los sob o ângulo do esquema
consciente-inconsciente ou ainda comunicável-incomunicável. Neste caso, tem de
compensar-se a perda de certeza por um ganho de informação – o que é o problema
de todas as críticas da ideologia, dos psicoterapeutas e outra gente da mesma
espécie.”
“Politique et
complexité” (Niklas Luhmann)
A convicção dos
políticos não é prejudicada quando eles entram em contradição com afirmações suas
produzidas antes (“só os burros é que não mudam”, disse um
mestre), tal como o não é a solidariedade dos seus camaradas de partido. É um
caso de auto-observação dum sistema social e, como diz Luhmann, o que é
distintivo da auto-observação não é um “acesso
privilegiado a fontes de informação particulares”, mas o facto do “Si” não
ser substituível. Isto é, ninguém, nem nenhum outro partido pode colocar-se no
lugar dum partido para “saber”.
Quanto aos que estão “de
fora” do sistema partidário (mas quase sempre dentro dum outro sub-sistema),
eles podem ganhar em informação o que perdem em certeza. Por isso, um partido é
uma máquina para a acção política em grande parte por ser incapaz duma
verdadeira crítica. A acção é selectiva da informação e a informação a mais é
contra-producente.
No caso da presente
crise portuguesa, não encontramos a crítica nem no partido do governo nem nos
partidos da oposição. Tudo se processa numa lógica maníaca e para dentro de
cada grupo.
Os observadores “estranhos”,
esses, bem podem esgrimir os dados económicos da crise que não há comunicação
que os faça chegar aos sistemas infectados.
Precisávamos todos de
fazer um estágio em Sírius.
quinta-feira, 24 de março de 2011
O GATO DO TEATRO
http://www.early-sarah-brightman.com |
“Now, these
kittens, they do not get trained
As we did in
the days when Victoria reigned.”
“Gus: The Theater Cat” (T.S. Eliot)
Já nada é como
dantes. Os gatinhos não têm o treino dos tempos em que reinava Victória. O gato
de Eliot é saudosista e não compreende as novas gerações. Mas, com a melhor
boa-fé, apenas segue as pisadas dos que o antecederam.
Não há nada de mais
expectável do que ver os jovens das redes sociais, do surf da praia ou da
Internet a dizer, daqui a uns anos, que este tempo é que era e que os novos
bichanos não receberam o treino.
Mas há uma novidade
debaixo do sol, que é produto da velocidade com que o nosso mundo se
transforma. Dantes, a nova cultura distinguia-se bem da antiga, os gostos de
pais e filhos confirmavam uns e outros na sua diferença. Já não é mais assim.
Descontado o factor da idade, as distinções duram tão pouco que a cultura
antiga e a nova se sobrepõem. O novo é o emblema já não duma geração, mas do
tempo em que se adere a um modelo tão efémero como o duma versão do software.
quarta-feira, 23 de março de 2011
O MITO NO ESPELHO
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http://farm3.static.flickr.com |
Segundo uma sondagem
recente (New York Times de 22/3/2011), os americanos
têm uma percepção errada das desigualdades no seu país. Não invejam os ricos
porque pensam ter mais probabilidades do que as que realmente têm de se
tornarem eles próprios milionários. O mais interessante é que se fossem
convencidos de que, na realidade, 20% dos americanos possuem 84% da riqueza,
estariam de acordo em que essa percentagem da população não deveria possuir
mais do que 32%.
Parece evidente que
essa distorção da realidade não é mera ignorância e de que corresponde antes a
um “wishful thinking”
consentâneo com os grandes mitos americanos, como o do “self-made man”
ou o do individualismo pioneiro.
É por isso que aquilo
a que, na Europa, chamamos de esquerda, com a sua própria mitologia revolucionária
e a sua cultura do Estado, não existe nos EUA. O “sonho americano” sobrevive,
apesar de todos os desmentidos da realidade (a não ser que a sua força venha
desses mesmos desmentidos, porque o idealismo só medra onde a realidade não o
confirma) e acaba por ser uma “idiossincrasia” colectiva, favorável à
estabilidade política e ao tónus moral da nação.
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