domingo, 15 de maio de 2011

A CIDADE DOS MORTOS




Sérgio Tréfaut diz que não teria podido fazer o seu admirável documentário se fosse preciso pedir autorização. Nenhum governo gosta de que se mostre quase um milhão de pessoas a viver em cemitérios por falta de alojamento decente. Mas é como a condução no Cairo que parece servir-se do sonar para evitar as colisões naquele tráfico caótico. “O Egipto é um país onde tudo pode ser e tudo não pode ser”.

Uma expressão recorrente da “Cidade dos Mortos”, para além da invocação de Allah a todo o momento, é “O que se pode fazer?” Ainda se vive pior em alguns bairros fora do cemitério, por isso se paga mais, quando os donos dos túmulos o exigem para morar lá dentro. Responder com uma pergunta retórica, “O que é que se pode fazer?”, não é simples fatalismo. Apesar do mundo global (que acabou, recentemente, de produzir o primeiro impacto) e do que poderia ser um humilhante atraso ou uma clamorosa injustiça, a situação não parece perturbar um saber-viver milenário.

É impressionante a importância da religião, aqui reforçada pela co-habitação com os mortos. Eles impõem a sua sageza aos vivos. A vida dessas pessoas é um culto ininterrupto e a religião é o seu pensamento (não é uma ideologia). Quanto mais longe da modernidade, mais o fenómeno adquire importância. A propósito de nada, o velho que já construiu o seu túmulo perto do da mulher diz que Allah é o único Deus. Toda a supremacia ocidental é, com isso, despachada como idolatria, do dinheiro, sobretudo. O que muda, diz, são as pessoas, porque o cemitério é sempre o mesmo. Não há solução de continuidade entre vivos e mortos.

Completa a sessão uma curta-metragem também de Tréfaut, filmada no mesmo local e intitulada:”Waiting for Paradise”. Eles acreditam que há duas portas para o Paraíso: o casamento e uma boa morte. Desde muito cedo, as crianças são preparadas para o ciclo da vida. O coveiro ficou sem um cêntimo para que a noiva, sua filha, pudesse ter um frigorífico e um ou outro electro-doméstico. O noivo encarregou-se de arranjar o apartamento. Sem os filhos, a vida não tinha sentido porque se interrompia o ciclo.

A comunidade silenciosa, mas tremendamente influente, em volta da “aldeia” parece lembrar a todos o percurso obrigatório: casar, ter os filhos e morrer, enquanto se espera que se abra a outra porta do Paraíso.

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