Sérgio Tréfaut diz que não teria podido fazer o seu admirável documentário se fosse preciso pedir autorização. Nenhum governo gosta de que se mostre quase um milhão de pessoas a viver em cemitérios por falta de alojamento decente. Mas é como a condução no Cairo que parece servir-se do sonar para evitar as colisões naquele tráfico caótico. “O Egipto é um país onde tudo pode ser e tudo não pode ser”.
Uma expressão
recorrente da “Cidade dos Mortos”, para além da invocação de Allah a todo o
momento, é “O que se pode fazer?”
Ainda se vive pior em alguns bairros fora do cemitério, por isso se paga mais,
quando os donos dos túmulos o exigem para morar lá dentro. Responder com uma
pergunta retórica, “O que é que se pode
fazer?”, não é simples fatalismo. Apesar do mundo global (que acabou,
recentemente, de produzir o primeiro impacto) e do que poderia ser um humilhante
atraso ou uma clamorosa injustiça, a situação não parece perturbar um
saber-viver milenário.
É impressionante a
importância da religião, aqui reforçada pela co-habitação com os mortos. Eles
impõem a sua sageza aos vivos. A vida dessas pessoas é um culto ininterrupto e
a religião é o seu pensamento (não é uma ideologia). Quanto mais longe da
modernidade, mais o fenómeno adquire importância. A propósito de nada, o velho
que já construiu o seu túmulo perto do da mulher diz que Allah é o único Deus.
Toda a supremacia ocidental é, com isso, despachada como idolatria, do
dinheiro, sobretudo. O que muda, diz, são as pessoas, porque o cemitério é
sempre o mesmo. Não há solução de continuidade entre vivos e mortos.
Completa a sessão uma
curta-metragem também de Tréfaut, filmada no mesmo local e intitulada:”Waiting
for Paradise”. Eles acreditam que há duas portas para o Paraíso: o casamento e
uma boa morte. Desde muito cedo, as crianças são preparadas para o ciclo da
vida. O coveiro ficou sem um cêntimo para que a noiva, sua filha, pudesse ter
um frigorífico e um ou outro electro-doméstico. O noivo encarregou-se de arranjar o
apartamento. Sem os filhos, a vida não tinha sentido porque se interrompia o
ciclo.
A comunidade silenciosa,
mas tremendamente influente, em volta da “aldeia” parece lembrar a todos o
percurso obrigatório: casar, ter os filhos e morrer, enquanto se espera que se
abra a outra porta do Paraíso.
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