
(José Ames)
“There are no levels of meaning as such. There are, rather, levels of awareness on the part of the reader.”
“A New Approach to Joyce” (Robert Ryf, citado por James T. Shammas)
Este pensamento, a propósito da obra de James Joyce, pode ser transposto para a nossa percepção do mundo.
A consciência moderna dos vários níveis de sentido da realidade que acompanha os progressos da ciência é diferente do “sentimento” da complexidade que é uma experiência de sempre.
Digamos que graças a essa consciência criámos novos objectos que estudamos e modificamos.
Mas essa nova complexidade esteve sempre presente na realidade física, por exemplo, faltando-nos apenas a teoria e os instrumentos, ou foi criada agora com a nossa percepção modificada?
“Nós somos de modo infame uma nação móvel. Essa é uma das pedras angulares do sonho americano e a causa na raiz das nossas igualmente infames reservas de optimismo. A nossa curta história, raízes imigrantes e espírito pioneiro alimentam a nossa aspiração à novidade e à liberdade, de mão dada comas nossas lealdades epidérmicas. Ser Americano é essencialmente ser de outro lado qualquer.”
“Distracted” (Maggie Jackson)
É um lugar-comum caracterizar a nação americana como desprovida de raízes. Isso explicaria a sua terrível capacidade de se mudar a si mesma, de se adaptar. E tudo concorre para fazer desse país uma espécie de laboratório da experiência humana contemporânea.
O termo americanismo define um juízo negativo dessa diabólica agilidade, que não se deve, contudo, à falta de preconceitos (podem ser mais tradicionalistas do que os europeus), mas à sua organização política e ao seu dispositivo económico.
O homem que se apresentava: chamo-me John Ford e faço westerns, fez uma espécie de comédia na Polinésia francesa (Donovan’s reef).
A marca do autor revela-se logo numa virilidade truculenta, machista e patriótica que se exprime por uma contínua bebedeira, as “bagarres” de uniformes e pelos açoites (do género: estavas mesmo a pedi-los) no traseiro feminino.
Não há índios (o nativo das ilhas é um anjo musculado que toca ukulele), com a sua selvagem dignidade, para motivar o heroísmo. A paisagem não tem os contrafortes épicos do Monument Valley, mas é o paraíso na terra, com palmeiras, música e o amor na fase colectora.
Assim, resta aos velhos cowboys aborrecerem-se olimpicamente, partindo algumas garrafas e cadeiras. A luta metafísica que se trava em “O homem que matou Liberty Valance”, continua aqui, com os mesmos actores, no tom paródico.
“Sobre o museu das Almas no Purgatório, um dominicano, padre Omez, escreveu estas palavras:’Se admitirmos que semelhantes marcas não são efeito de um simples acidente ou de uma transposição mais ou menos consentida, deduzimos que elas não podem ser produto do fogo espiritual que consome as almas isoladas. Daí não poderem ser senão o efeito de um milagre de Deus, que cria para a circunstância um elemento capaz de queimar os objectos, deixando neles aquela marca negra que é o símbolo da queimadura espiritual dessas almas face à expiação.”
(in “Sob um nome falso” de Cristina Campo)
O raciocínio parece ser este: quando o fenómeno não é voluntário nem involuntário (um simples acidente), o que é que fica? : o milagre que é a vontade de Deus.
Porque estamos a falar duma marca no corpo e não dum objecto distante da galáxia, o que nos acontece pode referir-se à vontade individual (não faz sentido, pelo contrário, dizer-se que a órbita de Mercúrio é involuntária). Mas é por isso que aquele “símbolo da queimadura espiritual”, para a qual não contribuímos, nem se pode explicar pelas leis da Física conhecidas, nos é tão estranho como a órbita de Mercúrio.
É esta uma problemática ultrapassada? Nem por isso.
O padre Omez convoca a intervenção divina para justificar o fenómeno estranho (que logo deixa de o ser, quando é nomeado o seu Autor). Ora, na política, por exemplo, todos lidamos com objectos estranhos (uma crise não prevista pelos magos da finança) e logo os “naturalizamos”. Para uns é a falta de regulação, para outros a natureza do sistema (como a do escorpião na fábula contada por Orson Welles).
Não se podia, é claro, pedir ao pobre dominicano que usasse o nosso vocabulário sofisticado.
“Seria contrário à natureza conservadora das pulsões se o objectivo da vida fosse um estado que nunca tivesse sido alcançado antes. Tem de ser um estado anterior inicial que o vivente deixou uma vez e ao qual aspira a regressar acima de todos os desvios da evolução.”
“Para além do princípio do prazer” (Segismund Freud)
Sloterdijk (“O Estranhamento do Mundo”) cita também, a este propósito, Nietzsche que diz que “nós temos a arte de não morrermos da verdade”.
A ideia de Freud e de Nitezsche parece ir contra a tradição cristã de se alcançar, através da mortificação, a bem-aventurança. Contudo, o encontro final de Dante e Beatriz, no presumido Paraíso, é estático como a morte.
Se quisermos ler a eterna demanda da verdade como a procura de algo que não queremos realmente conhecer, toda a ciência seria atingida por um juízo de frivolidade ou, no melhor dos casos, como uma forma da arte de viver, desviando-nos dum conhecimento mortal.
De facto, o tempo é o que nos separa da verdade. E parece que tudo o que podemos conhecer é obra do tempo.
Yeats diz: “(…) though leaves are many, the root is one, through all the lying days of my youth, I swayed my leaves and flowers in the sun; now I may wither into the truth.”
Donde, a verdade, ao encontro do que diz Freud, talvez seja um regresso às incompreensíveis origens.
“(…) revivemos durante alguns minutos a organização do dispositivo cinematográfico, com a sua ausência de olhar e o seu plano geral que impede que se compreenda aquilo que é mostrado na falta de um comentador mais informado do que os espectadores.
Porque, neste estádio do plano geral fixo, como ir além da descrição? Na transmissão em pseudo-directo da “revolução romena”, já tínhamos feito a experiência da não-eloquência das imagens, se assim podemos falar, da incapacidade da imagem para narrar, na ausência do saber lateral sobre a realidade. Revivemo-lo no 11 de Setembro,”
“O Terror Espectáculo” (François Jost)
O plano geral, em princípio, não discrimina. Mas a profundidade de campo, por exemplo, pode distinguir um objecto próximo sem deixar de focar os outros planos.
Mas se não conhecermos a história de Susan Alexander, em “Citizen Kane”, não relacionaremos o copo em primeiro plano e a tentativa de suicídio.
Há alguns relatos etnológicos que demonstram que a leitura dum plano não é espontânea. As imagens que hoje dominam a nossa vida como que eclipsaram o “saber lateral da realidade” que permite a sua leitura.
Quanto menos apetrechados em termos linguísticos, mais próximos estamos de ser manipulados pela sua “legendagem”.
As primeiras imagens do ataque às torres do WTC não se distinguiam de facto do cinema. O sentido das imagens vacilou, num primeiro momento, entre o lúdico e o real. A ideia de que a imagem vale mil discursos esconde a sua dependência da linguagem. Só vale mil discursos quando cativa já da palavra.
A demagogia está bem estabelecida, porque não é doutra forma que as crianças são levadas a ultrapassar as suas birras, e todos fomos crianças. Por isso não se espere que os partidos sejam virtuosos ao ponto de a pôrem de lado.
"Raramente estamos completamente presentes num momento ou para os outros. A presença é algo de nu, permeável e emendado. Acrescente-se a este retrato da vida doméstica americana o ascenso do individualismo ligado à rede e começareis a ver por que os membros da família não estão à porta, saudando-se uns aos outros. Para lidar com as nossas pulsantes órbitas pessoais e para nelas nos mantermos, vivemos num mundo por nós fabricado, alimentando-nos de menus separados, ligados aos centros de media baseados no nosso quarto, aderindo a agendas parametrizadas."
"Distracted" (Maggie Jackson)
A experiência de todos os dias é o que somos menos capazes de analisar. É verdade que as rotinas nos facilitam a vida, mas é só uma parte de nós que nelas se envolve. Que ocasião haverá para o que nos devia solicitar mais intensa e profundamente, se aperfeiçoarmos uma agenda exclusivamente configurada segundo os nossos gostos e inclinações?
Parece que o desenvolvimento tecnológico vai num único sentido que é o do individualismo e das relações virtuais, e que ao físico está prometido um ersatz do erotismo e da morte, com a sistematização do desejo como design, provido do seu código e da sua semântica.
Não é por acaso que a cultura que mais avançou nessa via "desconheça" a realidade física da morte.
Oliveira conta aqui a história dum anjo loiro que se revela ladrão.
É preciso compreender a reacção do jovem Macário (Ricardo Trêpa). Tal como nesse outro conto moral, "La Marquise von O", a decepção é tanto maior quanto de mais alto caem as nossas ilusões. No filme de Rohmer, o salvador da bela marquesa é o mesmo homem que viola o seu corpo inanimado.
Há um apontamento de mestre que define a personagem de Luísa (Catarina Wallenstein). Na cena do beijo, a câmara foca apenas as pernas. E vemos a rapariga loira fazer algo de "out of tune": ela levantou a perna como se sentisse numa cena já vista.
Tanto basta para termos de procurar noutro lado a sua paixão (ou o seu vício).
É curioso o desfasamento dos costumes conforme a narração de Eça (o sobrinho pedindo a bênção) que Oliveira conserva tal e qual, no meio de alguns adereços modernos, como o computador.
Se quisesse actualizar realmente a narrativa, Oliveira teria de dar algum lugar ao "politicamente correcto": afinal a rapariga sofria de cleptomania; nada mais do que isso.
"Algumas vezes ele saía muito tarde e regressava pouco antes de amanhecer, o que significava que ela tinha que esperar por ele. Monsieur Proust nunca levava as chaves de casa."
André Aciman (Introdução a "Monsieur Proust" de Céleste Albaret)
Este doente do magnum opus, protegido dos ruídos no seu quarto da rua Hamelin forrado a cortiça, caverna que os efeitos especiais da fumigação para a asma tornavam no ambiente vulcânico da criação, nunca pôde suportar dormir sozinho.
No regresso a casa, depois duma sortida nocturna (e aqui o vício que poderia motivar o voo do morcego tem o mesmo valor da verificação maníaca dum pormenor que irá dar à obra a consistência do cristal), quando voltava precisava de ser imediatamente acolhido pelo "círculo mágico" de que fala Céleste que, para ele, não era outra coisa do que a benevolência maternal. A criada que o esperava era o símbolo mais próximo desse gesto querido.
Por isso, não podia levar as chaves.
"Na época em que foi concebida esta tragédia ("Venise sauvée"), Simone Weil escrevia a Joe Bousquet: 'conseguir compreender totalmente que as coisas e as pessoas existem. Alcançá-lo, nem que seja uma vez antes de morrer; essa é a única graça que eu peço.' Só um sentimento assim, de tal modo indiviso da realidade, tem o poder de criar uma obra poética, a verdade correspondente; e com ela a possibilidade de uma leitura total (que reúna em si todos os planos da vida e da consciência) dos símbolos e das figuras que a mesma coloca perante nós."
"Sob um falso nome" (Cristina Campo)
Que a existência nos pareça evidente e o voto de Simone Weil quase enigmático tem a ver com os planos da vida e da consciência de que fala Cristina Campo.
Não tenho mais consciência de que, por exemplo, este caderno e esta esferográfica existem do que existência do meu braço. E se é o mar que contemplo, faço parte do espectáculo porque posso deixar de estar diante dele e envolver nisso todos os sentidos.
Mas a compreensão total da existência, para ser desejada como a salvação, é outra coisa. Está acima da ordem da responsabilidade compreender que os outros existem. Porque a compreensão de todos os planos da vida diluiria a própria subjectividade na realidade do ser.
Alcançar por um momento esse cume da existência, infelizmente, não nos salva da queda (e da decadência). Não devia ser o maior salto que podemos dar, mas uma plataforma para caminhar na luz. Como o paraíso de Dante, devia ser um triunfo e uma recompensa, e não a visão fugitiva dum lugar onde não poderemos nunca morar.
"Talking to the dead and talking on the phone both hold out the promise of previously unimaginable contact between people."
(Pamela Thurschwell, citada por Maggie Jackson in "Distracted")
No final do século XIX, as comunicações deram de facto um salto gigantesco, que só não nos parece tal por termos entretanto adoptado essa passada.
A telepatia, com que Einstein brincava na sua crítica à acção à distância dedutível da teoria quântica e o espiritismo que seduziram homens como H.G. Wells não pareciam mais improváveis do que o telefone.
E, de repente, suscitando a mesma admiração supersticiosa que sentiu o narrador proustiano ao estabelecer, em Balbec, um contacto com a sua mãe em Paris, fez-se a ponte entre o visível e o invisível.
E não é preciso pensar no mundo da relatividade geral e no facto de podermos estar a receber a luz duma estrela morta ou mensagens de impérios inimaginavelmente mais antigos do que o império egípcio, para percebermos que o humano ganhou uma nova e incompreensível dimensão e que "falar com os mortos" está longe de ser apenas uma metáfora.
"Eu tinha chamado a isto 'efeito de Édipo', porque o oráculo desempenha um papel da maior importância na sequência de acontecimentos que levou ao cumprimento da sua profecia. (Era também uma alusão à psicanálise, a qual tinha estado estranhamente cega para este facto interessante, mesmo se o próprio Freud admitisse que os próprios sonhos sonhados pelos pacientes eram muitas vezes coloridos pelas teorias dos seus analistas).
Unended Quest (Karl Popper)
Popper deixara de acreditar que este "efeito de Édipo" fosse a marca distintiva das ciências sociais em relação às ciências da natureza. Também na biologia molecular, "as expectativas frequentemente desempenhavam um papel produzindo o que era esperado."
Não sei se este efeito não é uma modificação devida ao observador, como as que são inseparáveis da física quântica.
No caso da psicanálise, no entanto, os "obliging dreams" de Freud não fazem do paciente uma câmara de eco do analista. A teoria psicanalítica introduz um elemento estranho na situação mental do doente que obriga este a um esforço de adaptação e de "recuperação" (como se dizia, há uns anos, que o capitalismo recuperava a crítica dos seus opositores), de consequências imprevisíveis. E às vezes mudar um estado de coisas é tudo o que é preciso.
De qualquer modo esta contingência só nos leva a equiparar a psicanálise a outras práticas de sugestão.
"Os filósofos existenciais falam de um "estar lançado no mundo", mas eu prefiro as descrições psiquiátricas de 'dissociação'. Os seres humanos podem dissociar a sua mente do mundo e criar metáforas como a dum filme cósmico a 3 dimensões. As metáforas são símbolos livremente criados transcendentes em relação ao mundo, os quais, se os partilharmos, organizam a nossa experiência social de novas maneiras."
"The Cosmic Code" (Heinz Pagels)
A alternativa a esta criação de metáforas de dissociação mental em relação ao "mundo", parece ser a via da fusão espiritual aconselhada por algumas religiões orientais.
Na medida em que for possível a não-distinção do ser, nós seremos então verdadeiramente o alfa e o ômega. Mas a simples existência do nosso cérebro contradiz este cenário. Ele diz-nos que a nossa própria existência é problemática e que o nirvana de modo nenhum está ao alcance de todos. Para nos despojarmos precisamos primeiro de nos vestir.
O que a psiquiatria tem revelado é que precisamos muitas vezes de criar um mundo à parte para seguirmos em frente. E há-os de todos os feitios. Há as pátrias e as religiões portáteis e aquelas que andam à volta dum lugar fixo.
De qualquer modo, se nos "libertarmos" de tais mundos, será só para nos integrarmos num outro aparentemente maior, mas que será ainda uma metáfora.