“Sobre o museu das Almas no Purgatório, um dominicano, padre Omez, escreveu estas palavras:’Se admitirmos que semelhantes marcas não são efeito de um simples acidente ou de uma transposição mais ou menos consentida, deduzimos que elas não podem ser produto do fogo espiritual que consome as almas isoladas. Daí não poderem ser senão o efeito de um milagre de Deus, que cria para a circunstância um elemento capaz de queimar os objectos, deixando neles aquela marca negra que é o símbolo da queimadura espiritual dessas almas face à expiação.”
(in “Sob um nome falso” de Cristina Campo)
O raciocínio parece ser este: quando o fenómeno não é voluntário nem involuntário (um simples acidente), o que é que fica? : o milagre que é a vontade de Deus.
Porque estamos a falar duma marca no corpo e não dum objecto distante da galáxia, o que nos acontece pode referir-se à vontade individual (não faz sentido, pelo contrário, dizer-se que a órbita de Mercúrio é involuntária). Mas é por isso que aquele “símbolo da queimadura espiritual”, para a qual não contribuímos, nem se pode explicar pelas leis da Física conhecidas, nos é tão estranho como a órbita de Mercúrio.
É esta uma problemática ultrapassada? Nem por isso.
O padre Omez convoca a intervenção divina para justificar o fenómeno estranho (que logo deixa de o ser, quando é nomeado o seu Autor). Ora, na política, por exemplo, todos lidamos com objectos estranhos (uma crise não prevista pelos magos da finança) e logo os “naturalizamos”. Para uns é a falta de regulação, para outros a natureza do sistema (como a do escorpião na fábula contada por Orson Welles).
Não se podia, é claro, pedir ao pobre dominicano que usasse o nosso vocabulário sofisticado.
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