quinta-feira, 31 de maio de 2012
O LADO DE ALICE
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"Alice in Wonderland" (Tim Burton) |
"- 'Já lhes cortaram a cabeça?' gritou a Rainha.
- 'As cabeças deles já foram, para servir Sua Majestade!' gritaram os
soldados por resposta.
- 'Está bem!' gritou a Rainha. 'Sabes
jogar o críquete?'
Os soldados ficaram em silêncio e olharam para Alice, como a pergunta lhe era evidentemente dirigida."
"Alice no País das Maravilhas" (Lewis Carroll)
Na paródia de Mel Brooks sobre a história do mundo, o
rei, depois de exercitar a pontaria num dos seus súbditos que passeava nos
jardins de Versalhes, exclama: - "It's good to be a king!"
Apesar da crueldade de ambas as cenas, é duvidoso se
contribuiriam para a revolução social. A
fantasiosa decapitação dos três jardineiros da Rainha de Copas ou o hipotético
"tiro ao alvo" de Luís XV são, evidentemente, imagens do poder
arbitrário, mas o poder tende sempre para isso. Porque só comia carne humana,
o Minotauro da lenda exigia o sacrifício
permanente de homens e mulheres, mas com o tempo, até a sua antropofagia se tornou
mais selvagem.
Assim como não é a miséria que se revolta contra o seu
estado, as vítimas do poder arbitrário precisam de escapar primeiro à sua
prisão imaginária (e a das imagens projectadas pelo poder) para conceberem a
revolta.
O fio da Ariadne é muito mais do que um estratagema. Ela
viu com os olhos de Alice e com a sua "incredulidade".
quarta-feira, 30 de maio de 2012
OXÍMORO
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teleios.com.br |
"O mal francês, sabe-se qual é: inventam-se sempre
novos estratos, mas é-se incapaz de suprimir outros. A minha pergunta é a
seguinte: por causa da descentralização, não há um degrau a mais e, se ele se
encontra ao nível local, o senhor suprimiria essa colectividade que
dirige?"
(Jean-Louis Le
Moigne no colóquio de Cerisy, "Intelligence de la complexité)
Dizia uma personagem de Musil que a vida se complica
sempre que nos deixamos enredar pelos sentimentos, em vez de irmos direitos ao
fim que temos em vista.
A descentralização parece ser uma boa coisa, embora não
em todas as circunstâncias, ou então deveríamos, talvez, regressar ao
feudalismo. Mas haverá um processo, em democracia, de suprimir um
"estrato" para dar lugar a outro, sem usar de alguma forma de
violência, nomeadamente, a de submeter os interesses da minoria aos duma
proclamada maioria?
Nas reestruturações empresariais, por exemplo, quando há
algum equilíbrio do poder, recorre-se à "revolução" temporal, com a
passagem gradual, pela reforma dos mais velhos, para um novo organograma. Nos
tempos que correm, porém, a democracia deixou de estorvar, e a mudança faz-se
como se não se tivesse de lidar com pessoas nem com sentimentos.
Encontrei nos ensaios de Vasco Pulido Valente, um
saboroso oxímoro para caracterizar o regime da primeira república: a ditadura
democrática. Não estamos longe.
terça-feira, 29 de maio de 2012
ORDÁLIO
"Sacudi o suor e o sol. Compreendi que tinha
destruído o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional duma praia onde já fora
feliz. Então, disparei ainda quatro tiros sobre um corpo inerte em que as balas
nem pareciam se enterrar. E era como quatro breves golpes com que batia à
porta da desgraça."
"L'étranger" (Albert Camus)
A primeira escaramuça entre os dois grupos foi racial. Um
dos seus amigos levara uma facada superficial. Agora Meursault, voltando à
praia, encontra um dos árabes estendido na areia e a um gesto seu, mal
interpretado, a cintilação da faca precipita tudo.
Quem provocou quem no primeiro encontro? Quem sacou da
lâmina e quem disparou por fim? O estrangeiro é este corpo que se diz
pertencer-nos.
Em "Era uma vez na Anatólia" (Nuri Ceylan), um
homem, sob a influência do álcool, gaba-se de ser o pai do filho do outro e,
depois duma breve luta (quem estaria mais bêbedo?) o ofendido acaba por ser
enterrado vivo junto a uma fonte na estepe.
Contrastando com a conversa casual entre os polícias ou
aquela que entretêm entre si o procurador e o médico, há a linguagem dos
relatórios, um, feito depois da exumação e o outro durante a autópsia. Nesta linguagem,
procura-se deixar-se a vida de fora.
Para se fazer justiça, começa-se por parar tudo, apagar a mínima centelha. A
"objectividade" é um aparelho de simplificação, com vista a permitir
uma decisão. Um ordálio científico.
segunda-feira, 28 de maio de 2012
ERA UMA VEZ NA ANATÓLIA
Belas cenas nocturnas nas estepes da Anatólia, com a
poeira dos carros da polícia desenhada na luz dos faróis, uma busca de fonte em
fonte segundo as indicações confusas do assassino, para encontrar o local onde
o corpo da vítima fora enterrado, as conversas daquela noitada entre os homens,
e no centro uma cena de "levitação". A equipa, de que faz parte um
médico e um procurador, faz uma pausa para descansar e tomar uma bebida quente
numa pequena aldeia, em casa do chefe do município, Mukhtar. A cena é interrompida por
um corte de electricidade, o que dá lugar a um comentário sobre as prioridades
do "município" que se esforçava por obter apoio para uma morgue ( em
terra de emigração, os corpos tinham que aguardar pela última homenagem dos
ausentes). Numa luz que faz lembrar a pintura de La Tour, Cemile, a filha de Mukhtar, duma
extraordinária beleza, serve o chá,
provocando nos rostos duros um movimento de admiração. A aparição não deixa
ninguém indiferente, desatando a má-vontade do assassino, o que leva à rápida
conclusão das buscas.
O prisioneiro chora porque o filho do morto, na verdade o
seu filho, lhe atira uma pedra à cabeça. Na autópsia, o médico condoído omite
uma circunstância agravante: havia terra nos pulmões da vítima, o que levava a
supor que tivesse sido enterrado vivo.
A capacidade dos homens de se fazerem mal uns aos outros
parece não ter limites e ser uma espécie de fatalidade. A história que o
procurador conta ao médico duma mulher que anunciou a sua própria morte no
seguimento da traição do marido, é como um comentário da história principal. Nêmesis no país dos turcos.
sábado, 26 de maio de 2012
O ZERO E O INFINITO
"O camponês tinha enterrado as suas colheitas; foi no princípio da colectivização da terra. Observei estritamente a etiqueta prescrita. Expliquei-lhe, amigavelmente, que precisávamos do trigo para alimentar a crescente população da cidade e para exportar, de modo a construirmos as nossas indústrias; portanto, não me quereria ele dizer, por favor, onde tinha escondido as suas colheitas.
O camponês tinha a cabeça enfiada nos ombros quando o trouxeram para a sala, à espera de uma tareia. Conhecia a sua espécie; eu próprio nasci no campo. Quando, em vez de lhe bater, comecei a arrazoar com ele, a falar-lhe como a um igual e a chamar-lhe cidadão, ele tomou-me por um atrasado mental. Vi-o nos seus olhos. Falei-lhe durante meia hora. Nunca abriu a boca e, alternadamente, coçava o nariz ou as orelhas. Continuei a falar, embora visse que ele considerava o caso uma enorme anedota e nem sequer estava a ouvir. Os argumentos simplesmente não penetravam nos seus ouvidos. Estavam bloqueados pela cera de séculos de paralisia mental patriacal. Segui estritamente o regulamento; nunca me ocorreu que existissem outros métodos..."
"Darkness at noon" (Arthur Koestler)
Tony Judt diz que não eram as vítimas que interessavam Koestler, mas a maneira como funcionava a mente comunista.
O relato transcrito pertence a Gletkin, um comunista da velha guarda que sofreu a eficácia dos tais outros métodos (pensa que teria cedido se não tivesse perdido os sentidos antes da vela sobre o seu crânio rapado ter chegado ao fim).
Mas devemos tomar a sua "inocência" pelo que realmente é. Os meios extremos não foram concebidos de início, quando era possível uma ignorância tão completa da realidade e uma tão absurda confiança nos argumentos racionais. Em face dos problemas mais urgentes, Staline não era homem para dar "um passo atrás", como fez Lenine. E quando o poder se concentra assim nas mãos de um só, o carácter desse indivíduo e até os seus humores acrescentam às forças de destruição.
A candura de Gletkin, ao lidar com a "experiência" do 'kulak', não podia ser o método indicado, porque "o tempo estava fora dos seus gonzos" e a Revolução não podia parar. Os dados do problema já não se compadeciam com o idealismo e os revolucionários foram os primeiros a trair os ideais. A sua sobrevivência tinha passado a identificar-se com a manutenção do poder. É neste processo que a sinceridade se torna cinismo.
sexta-feira, 25 de maio de 2012
ESPELHOS
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mattesonart.com |
"(...) o que há de deplorável nas teorias modernas
do comportamento não é que sejam falsas, é que se podem tornar verdadeiras, é
que são, de facto, a melhor conceptualuzação possível de certas tendências
evidentes da sociedade moderna."
(Hannah Arendt)
Se se pudesse governar por sondagem instantânea (e
estamos perto disso, com o 'Facebook', por exemplo), de modo a que não
tivéssemos tempo de ser influenciados pelos outros, atingiríamos,
paradoxalmente, o grau zero da democracia, porque tal significaria a morte das
ideias e da discussão à volta delas. A democracia sempre precisou da palavra e
nenhum 'like' de Zuckerberg a poderá substituir.
Ora, enquanto consumidores, já há muito tempo que somos
monitorizados, de tal modo que se se pode dizer que se o 'marketing' nos
condiciona, mesmo ao nível do subliminar, também é nosso o 'retrato-robot' que
serve de ponto de partida. O nosso comportamento baliza e é objecto de uma
experiência de verdadeira 'engenharia social'. O consumidor é o facto (e o
feito) que confirma a 'ciência do comportamento'.
A imagem do espelho e no espelho vêm aqui ao caso. Somos
de tal maneira feitos que essa imagem nos surge como um sinónimo da mentira, da
mais verosímil das mentiras: mas nunca poderemos coincidir com ela.
quinta-feira, 24 de maio de 2012
ALICE NO POÇO
"E aqui Alice começou a ficar um pouco sonolenta,
continuando a dizer para si mesma, como se estivesse no meio de um sonho, 'Será
que os gatos comem morcegos? Será que os gatos comem morcegos?' e por
vezes 'Será que os morcegos comem
gatos?', porque, vocês estão a ver, como ela não podia responder a qualquer das
questões, pouco importava o modo como as punha."
"Alice in Wonderland" (Lewis Carroll)
Ora, na vida, o que sobra são questões a que não se sabe
responder, mas para as quais, apesar disso, é necessária uma resposta.
Alguém disse que a humanidade só se punha as questões a
que pode responder. Não é assim, se por resposta entendemos mais do que um
movimento dos lábios.
Imagine-se só a multidão de "especialistas" que
iria engrossar as fileiras do desemprego se, por exemplo, os economistas dessem
só respostas daquilo que sabem, nomeadamente, sobre o futuro. Se deixassem de
falar em nome duma ciência que não existe, a economia, e fossem obrigados a
referir-se só às incertezas da economia política, ciência social, se há ciência
do social.
Mas não, continuam a extrapolar dos seus modelos
virtuais, comportando-se como os psicanalistas que falam do inconsciente. Estes
inventaram a coisa e fazem-na render. É o que fazem os especialistas da
Economia.
Se ao menos tivessem a desculpa da sonolência que atingiu
a pobre Alice a cair pelo seu poço interminável...
quarta-feira, 23 de maio de 2012
GERMES DO PODER
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Elias Canetti (1905/1994) |
"O momento em que um ser humano sobrevive a outro é
um momento 'concreto', e acredito que a experiência deste momento tem
consequências muito graves. Penso que esta experiência está encoberta pela
convenção, pelo que cada um 'deve' sentir quando se tem a experiência da morte
de um outro ser humano, mas por detrás disto esconde-se um certo sentimento de
satisfação, e a partir deste sentimento de satisfação, que até pode ser de
triunfo - como no caso de um combate - algo de muito perigoso pode surgir, se ocorrer
mais frequentemente e se se acumular. Esta experiência da morte de um outro ser
humano, perigosamente acumulada, é, acredito, um germe muito essencial do
poder."
(Elias Canetti, num debate com Theodor Adorno)
A morte repetida, banalizada, torna-se abstracta. É o que
acontece às imagens de morte que o tele-jornal nos "serve" à hora das
refeições, sem que se saiba de algum tele-espectador que tenha apresentado a
conta da sua consulta de estomatologia.
O mais sensível dos homens, ao sentar-se na cadeira do
governante, tem de adquirir a perspectiva que é necessária à sua função. Essa
perspectiva, no melhor dos casos, assemelha-se à vista a partir de um planalto,
em que os habitantes da aldeia vizinha parecem mais formigas do que homens. É a
"bagagem" do que assim perspectiva que lhe permite fazer a correcção
necessária. Por regra, a bagagem não chega.
No pior dos casos, o governante é atingido de
'gigantismo', mais ou menos disfarçado, nas suas relações com a 'termiteira'.
Esmaga sem se dar conta, atento apenas à sua recondução.
O poder é, assim, mais do que um afrodisíaco, um triunfo
ilusório sobre a morte. Negando a realidade dos outros, negamos também o
destino comum.
terça-feira, 22 de maio de 2012
AUSTEROS, 'MA NON TROPPO'
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Quintus Horatius Flaccus (65 AC/ 8 AC) |
"quid brevi tortes iaculamur aevo
multa? quid terras alio calentes
sole mutamus? patriae quis exsul
se quoque fugit?"
(Porquê tanta fadiga
em nossas curtas vidas por possuir mais e mais? Por que deixamos o nosso
país por climas que aquece um outro sol? Que exílio da pátria permitiu a
alguém, ao mesmo tempo, escapar a si mesmo?)
Horácio
Traduzo assim, livremente, a partir do inglês, e a
primeira constatação é que empreguei o dobro das palavras, tal é a concisão do
latim clássico. Lapidar é o termo.
A frugalidade elogiada pelo poeta era já uma lembrança no
tempo em que escreveu a sua ode. Alguém suspiraria pela simplicidade da
república na idade de Augusto, se não se sentisse amargurado pelos novos
costumes, não propriamente decadentes, visto que o império durou quase tanto
como aquela "idade de ouro"? Mas a virtude espontânea dos
antepassados teve de ser prègada pelo "pai da pátria" em que se
tornou o primeiro imperador, sobrinho de César.
Acontece que, hoje, a situação de crise pareceria
justificar, da parte do poder, uma tal prègação. Mas, em vez disso, o que temos
é o discurso da austeridade. Uma austeridade que não se pode prègar como
virtude estóica, mas apenas como um purgante, um incómodo temporário para
se recuperar a saúde económica. E a razão disto é, evidentemente, que o consumo se tornou
um dos deuses da nossa época.
De resto, que sentido teria, na era da tecnologia, a
moral de uma pastorícia homérica? Para o bem e para o mal, as nossas
"extensões" mcluhanianas fazem parte do que somos. Sem a tecnologia,
teríamos, desde logo, de abandonar as cidades...
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