terça-feira, 29 de maio de 2012

ORDÁLIO



"Sacudi o suor e o sol. Compreendi que tinha destruído o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional duma praia onde já fora feliz. Então, disparei ainda quatro tiros sobre um corpo inerte em que as balas nem pareciam se enterrar. E era como quatro breves golpes com que batia à porta da desgraça."

"L'étranger" (Albert Camus)



A primeira escaramuça entre os dois grupos foi racial. Um dos seus amigos levara uma facada superficial. Agora Meursault, voltando à praia, encontra um dos árabes estendido na areia e a um gesto seu, mal interpretado, a cintilação da faca precipita tudo.

Quem provocou quem no primeiro encontro? Quem sacou da lâmina e quem disparou por fim? O estrangeiro é este corpo que se diz pertencer-nos.

Em "Era uma vez na Anatólia" (Nuri Ceylan), um homem, sob a influência do álcool, gaba-se de ser o pai do filho do outro e, depois duma breve luta (quem estaria mais bêbedo?) o ofendido acaba por ser enterrado vivo junto a uma fonte na estepe.

Contrastando com a conversa casual entre os polícias ou aquela que entretêm entre si o procurador e o médico, há a linguagem dos relatórios, um, feito depois da exumação e o outro durante a autópsia. Nesta linguagem, procura-se deixar-se  a vida de fora. Para se fazer justiça, começa-se por parar tudo, apagar a mínima centelha. A "objectividade" é um aparelho de simplificação, com vista a permitir uma decisão. Um ordálio científico.

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