"(...) a verdade é este facto absolutamente incrível
que, num canto da terra, logo que passam da vã actividade do dia à carnal
sensibilidade da noite, todos os
sentimentos, como que enfeitiçados, sofrem realmente uma metamorfose."
"O Homem Sem Qualidades" (Robert Musil)
Mas o que se passa com a noite artificial, a noite das
nossas cidades, em que os turnos do sol e da electricidade nos garantem um
'continuum' que já nada parece ter a ver com a natureza?
No entanto, conhecemos, no fundo das grutas, por exemplo,
aqueles seres que vivem num outro 'continuum' sem transições. E nas regiões
polares, o próprio homem continua a ter a experiência desse dia em que
"sol nunca se põe". Mas não é
à vida que o 'alter ego' de Musil se quer referir, é à sensibilidade e aos
sentimentos.
Nalguns filmes de ficção, os 'zombies' que emergem dos
subterrâneos são sempre uma ameaça para os 'solares' que, no entanto, como em
"The invasion of the body snatchers", durante a noite são mais vulneráveis e
dir-se-ia que se transformam numa espécie de orquídeas que aspiram ao estado
'zombie', atraindo o necessário insecto que lhes há-de procurar a metamorfose.
A actividade diurna merece de Ulrich o epíteto de vã. Vã,
não, evidentemente, para os 'activos' que não podem fazer outra coisa e que
inclui a "luta pela vida". O que a torna assim é a perspectiva
nocturna. As nossas grandes urbes são uma pequena chama bruxuleando no espaço
infinito. Que montanhas de fé podiam conservar o nosso sentimento nas alturas
da ilusão diurna?
É o apelo de Pessoa na "Noite antiquíssima":
"Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze
da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de
longe vejo.
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao
longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E
deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente
perturbadora.
Na distância subitamente impossível de percorrer."
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