domingo, 20 de maio de 2012

EUPALINOS

Túnel de Eupalinos

"Fedro - Mas como é que tu tentas?
Eupalinos - Escuta ainda, pois que o desejas...eu não sei bem como te esclarecer sobre o que não é claro para mim mesmo...Ó Fedro, quando componho uma habitação (quer ela seja para os deuses, quer seja para um homem), e quando procuro essa forma com amor, aplicando-me a criar um objecto que agrade ao olhar, que alimente o espírito, que se acorde com a razão e as numerosas conveniências... vou dizer-te esta coisa estranha, que me parece que o corpo está metido nisso...Deixa-me dizer. Este corpo é um instrumento admirável, o qual tenho a certeza que os vivos, que o têm todos ao seu serviço, não usam na sua plenitude. Apenas tiram dele prazer, dor e os actos indispensáveis à vida. Tão pronto se confundem com ele; como esquecem durante um tempo a sua existência; e tão depressa brutos, tão depressa puros espíritos, ignoram que ligações universais eles contêm, e de que prodigiosa substância são feitos. Através dela, no entanto, eles participam do que vêem e do que tocam: são pedras, são árvores; trocam contactos e sopros com a matéria que os engloba. Tocam, são tocados, pesam e levantam pesos; movem-se, e transportam as suas virtudes e os seus vícios; e quando caem na divagação, ou no sono indefinido, reproduzem a natureza das águas, fazem-se areias e nuvens...Noutras ocasiões, acumulam e projectam o raio!...Mas a alma não se sabe exactamente servir  desta natureza que está tão perto dela, e que ela penetra."



"Eupalinos, ou l'Architecte" (Paul Valéry)




Há uns anos atrás, a grande Agustina que agora, nas palavras de Eduardo Lourenço, "jaz no seu leito de dor sem memória", disse, numa entrevista: "O corpo é uma inteligência." (Exp.1/12/1989)

A própria ciência, que se desenvolveu explorando  o método analítico e lógico-dedutivo, está hoje, confrontada com os seus paradoxos,  mais permeável a esta diferente racionalidade, a esta 'inteligência do corpo' que tem um 'adquirido' no chamado senso-comum e na sabedoria tradicional, e que sempre esteve presente,  secretamente ou confundida com a "inspiração", na génese da criação artística e da descoberta científica.

Precisamente, o que nos está mais próximo é  aquilo que menos conhecemos. E perdemos, infelizmente, o sentido dessa harmonia de que fala o poeta entre o nosso corpo (que para nós, para além do prazer e da dor, como ele diz, quase se reduz ao objecto da higiene e da medicina - quando o corpo não funciona) e o universo de que somos parte e também todo (embora não saibamos como).

O contacto com esse corpo não é, paradoxalmente, imediato. Tudo no-lo torna inacessível, a começar pela suposta consciência de que sabemos o que ele é na realidade.

Mas o arquitecto que desenhou o túnel mais famoso da Antiguidade, na ilha de Samos, instruído por Valéry, não se deixa confundir, e dirigiu-lhe esta oração:

"Ó meu corpo, que me lembrais a cada momento este temperamento das minhas tendências, esse equilíbrio dos vossos órgãos, essas justas proporções das vossas partes, que vos fazem ser e restabelecer no ser das coisas moventes; tomai atenção à minha obra; ensinai-me surdamente as exigências da natureza e comunicai-me essa grande arte de que sois dotado, da qual sois feito, de sobreviver às estações e de vencer os acasos. Concedei-me que na vossa aliança encontre o sentimento das coisas verdadeiras; moderai, reforçai, assegurai os meus pensamentos. Por muito perecível que sejais, soi-lo bem menos do que os meus sonhos. Vós durais mais do que uma fantasia; pagais pelos meus actos, e expiais os meus erros: instrumento vivo da vida, sois para cada um de nós o único objecto que se compara ao universo. A esfera inteira tem-vos sempre por centro; ó coisa recíproca da atenção de todo o céu estrelado! (...)"


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