Túnel de Eupalinos |
"Fedro - Mas como é
que tu tentas?
Eupalinos - Escuta ainda, pois que o desejas...eu não sei
bem como te esclarecer sobre o que não é claro para mim mesmo...Ó Fedro, quando
componho uma habitação (quer ela seja para os deuses, quer seja para um homem),
e quando procuro essa forma com amor, aplicando-me a criar um objecto que
agrade ao olhar, que alimente o espírito, que se acorde com a razão e as
numerosas conveniências... vou dizer-te esta coisa estranha, que me parece que
o corpo está metido nisso...Deixa-me dizer. Este corpo é um instrumento
admirável, o qual tenho a certeza que os vivos, que o têm todos ao seu serviço,
não usam na sua plenitude. Apenas tiram dele prazer, dor e os actos
indispensáveis à vida. Tão pronto se confundem com ele; como esquecem durante
um tempo a sua existência; e tão depressa brutos, tão depressa puros espíritos,
ignoram que ligações universais eles contêm, e de que prodigiosa substância são
feitos. Através dela, no entanto, eles participam do que vêem e do que tocam: são
pedras, são árvores; trocam contactos e sopros com a matéria que os engloba.
Tocam, são tocados, pesam e levantam pesos; movem-se, e transportam as suas
virtudes e os seus vícios; e quando caem na divagação, ou no sono indefinido,
reproduzem a natureza das águas, fazem-se areias e nuvens...Noutras ocasiões,
acumulam e projectam o raio!...Mas a alma não se sabe exactamente
servir desta natureza que está tão
perto dela, e que ela penetra."
"Eupalinos, ou l'Architecte" (Paul Valéry)
Há uns anos atrás, a
grande Agustina que agora, nas palavras de Eduardo Lourenço, "jaz no seu
leito de dor sem memória", disse, numa entrevista: "O corpo é uma inteligência." (Exp.1/12/1989)
A própria ciência, que se desenvolveu explorando o método analítico e lógico-dedutivo, está
hoje, confrontada com os seus paradoxos, mais permeável a esta diferente racionalidade, a esta 'inteligência do
corpo' que tem um 'adquirido' no chamado senso-comum e na sabedoria
tradicional, e que sempre esteve presente,
secretamente ou confundida com a "inspiração", na génese da
criação artística e da descoberta científica.
Precisamente, o que nos está mais próximo é aquilo que menos conhecemos. E perdemos, infelizmente, o
sentido dessa harmonia de que fala o poeta entre o nosso corpo (que para nós,
para além do prazer e da dor, como ele diz, quase se reduz ao objecto da higiene e da
medicina - quando o corpo não funciona) e o universo de que somos parte e também todo (embora
não saibamos como).
O contacto com esse corpo não é, paradoxalmente,
imediato. Tudo no-lo torna inacessível, a começar pela suposta consciência de que
sabemos o que ele é na realidade.
Mas o arquitecto que desenhou o túnel mais famoso da
Antiguidade, na ilha de Samos, instruído por Valéry, não se deixa confundir, e
dirigiu-lhe esta oração:
"Ó meu corpo, que me lembrais a cada momento este
temperamento das minhas tendências, esse equilíbrio dos vossos órgãos, essas
justas proporções das vossas partes, que vos fazem ser e restabelecer no ser das
coisas moventes; tomai atenção à minha obra; ensinai-me surdamente as exigências
da natureza e comunicai-me essa grande arte de que sois dotado, da qual sois feito,
de sobreviver às estações e de vencer os acasos. Concedei-me que na vossa
aliança encontre o sentimento das coisas verdadeiras; moderai, reforçai, assegurai
os meus pensamentos. Por muito perecível que sejais, soi-lo bem menos do que os
meus sonhos. Vós durais mais do que uma fantasia; pagais pelos meus actos, e
expiais os meus erros: instrumento vivo da vida, sois para cada um de nós o único
objecto que se compara ao universo. A esfera inteira tem-vos sempre por centro;
ó coisa recíproca da atenção de todo o céu estrelado! (...)"
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