quarta-feira, 12 de outubro de 2011

CACÂNIA





"(...) ele tinha passado sucessivamente por paralítico geral, paranóico, epiléptico, ciclotímico, até este último processo em que dois médicos-legistas particularmente conscienciosos, lhe tinham devolvido a saúde."


"O Homem Sem Qualidades" (Robert Musil)



Assim, Moosbrugger pôde ser condenado à morte pelo seu crime, sem mais dificuldades. Ulrich "sabia que o Estado, apesar de tudo, acabaria por matar Moosbrugger, simplesmente porque é o método mais claro, mais seguro e o menos custoso, se se tem em conta a imperfeição do mundo."

Tanta lucidez e tanta ironia são bem características do escritor. Bem vistas as coisas, e  o consenso sobre o que são certas doenças mentais e quando deixam de o ser e o caso de haver ou não imputabilidade, sendo raro e  infundamentado, a máquina da justiça ficaria, certamente, paralisada. O progresso da psicologia vai, assim, a par dum aumento da casuística. Mas o Estado da Cacânia, onde se passa o enredo,  é ainda maravilhosamente burocrático e o "nó górdio" pode ser "desatado" graças a uma simples circular ou a um simples relatório médico.

Dou comigo a pensar que Portugal, neste domínio da justiça, se tornou, também, cacânico. Mas aqui a burocracia não vem em socorro da perplexidade dos juízes, e a justiça  não tem que vestir. O seu prestígio foi arruinado pelo espírito corporativo e pela mudança dos costumes. A novos ritos corresponde uma nova religião.

0 comentários: