"Madonna del Magnificat" (detalhe, Benozzo Gozzoli) |
"Por vezes, à noite, quando ela estava fatigada, ele
fazia-me notar em voz baixa como ela, sem se dar conta, dava às suas mãos
pensativas, o movimento solto, um pouco atormentado da Virgem que mergulha a
sua pena no tinteiro que lhe estende o anjo, antes de escrever no livro santo,
onde já está traçada a palavra 'Magnificat'. Mas acrescentava: 'Sobretudo
não-lho vá dizer, bastava que ela o soubesse para o fazer de outra
maneira."
"À l'ombre des jeunes filles en fleur" (Proust,
citado por Eleonora Marangoni)
Odette de Crécy é vista por Swann como um Botticelli.
Zéfora, filha de Jethro, é o modelo. Como diz o romancista, ele não se enamorou
de uma mulher bonita (Odette não era, aliás, "o seu género"), mas de
uma mulher que, primeiro, lhe pareceu bela. A pintura do grande Sandro é o
"medium" para manter o primeiro sentimento. Enquanto o objecto do seu
amor, a antiga 'cocotte', a 'dama de cor-de-rosa' que o narrador, em criança,
vira em casa do tio celibatário, depois do tempo em que se dedicou a seduzí-lo
e a encorajar os seus estudos sobre a pintura de Vermeer, obtido o casamento e
a abundância material, suportava mal a "refocagem" botticelliana que
o agora marido, por uma espécie de fidelidade, lhe fazia ainda.
Depois de um tempo, Swann até disso se desinteressou. O
pintor florentino satisfez a sua necessidade de romanesco, transfigurando uma
mulher que "não lhe enchia as medidas" e que nem sequer,
verdadeiramente, o amava.
A mania (assim, a certa altura, o narrador lhe chama) de
Swann de utilizar os modelos da arte para viver um amor inspirado não é tão
rara quanto isso. Há uma dimensão no amor, entre um homem e uma mulher, que se
alimenta da poesia que encontra mais à mão. No nosso tempo, o cinema e a música
'romântica' fornecem o suplemento necessário.
Porque o desejo não chega a formar sentimentos. E sem
eles que relação pode durar? A poesia nutre os amantes durante o tempo perigoso
da paixão.
Botticelli foi para Swann poesia e paixão, coisas em que
a pobre Odette foi algo como o 'terceiro excluído', ou quando muito, a matéria
indiferente duma incarnação do ideal.
0 comentários:
Enviar um comentário