sexta-feira, 10 de julho de 2009

O RIO DO ESQUECIMENTO


"Vista de Delft" (Johannes Vermeer)


"Abateu-o um novo golpe e ele rolou do canapé para o chão onde acorreram todos os visitantes e guardas. Estava morto. Morto para sempre? Quem pode dizê-lo. Decerto que nem as experiências espíritas nem tampouco os dogmas religiosos trazem a prova de que a alma subsiste. O que se pode dizer é que tudo se passa na nossa vida como se entrássemos nela com o fardo de obrigações contraídas numa vida anterior; não há nenhuma razão nas nossas condições de vida nesta terra para que nos creiamos obrigados a fazer o bem, a ser delicados, a ser polidos até, nem para que o artista ateu se creia obrigado a recomeçar vinte vezes um trecho do qual toda a admiração que virá a excitar pouco importância terá para o seu corpo comido pelos vermes, como o pano de muro amarelo que pintou com tanta ciência e refinamento um artista para sempre desconhecido, apenas identificado sob o nome de Ver Meer."

"Sodome et Gomorrhe III" (Marcel Proust)


Esta ideia é toda platónica. Er, descido aos Infernos, presencia a cerimónia da escolha pelas almas do saco com a sua vida futura (sempre a mesma). Uma vida que apesar de reincidente é vivida como se fosse a primeira vez por virtude da água do Letes.

Que a máquina do Inferno tenha sido deliberadamente utilizada para fins políticos não é novidade nenhuma. O medo das penas eternas é um freio poderoso em almas crédulas.

Mas a outra parte do díptico, a pedagogia da outra vida é mais obscura e não se confunde com a problemática do chamado "ópio do povo". O mito de Er da Panfília estará tão completamente ausente das nossas vidas como parece, ou representará ele uma das traduções possíveis dum fenómeno recorrente, mas secreto, na nossa cultura?

Donde nos vêm essas obrigações implícitas que ninguém nos transmitiu e que não podem ser todas explicadas pela "arte de viver" em sociedade? Será o desejo de glória um motivo suficiente para o artista de que fala Proust refazer vinte vezes o seu quadro?

Seja lá o que for a Humanidade, parece que temos de recorrer a uma ideia como essa para dar sentido a alguns comportamentos dos indivíduos. E a verdade é que os que viveram antes de nós são como que a nossa vida anterior. Pelo efeito da água do rio do esquecimento, todos os indivíduos de outras vidas são como um único e só indivíduo.

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