domingo, 25 de maio de 2008

OS AMIGOS DE ETTY


Rainer Maria Rilke (1875/1926)


"Dentro de dias, vou ao dentista chumbar os meus dentes cariados. Seria verdadeiramente grotesco sofrer uma dor de dentes ali. Terei de arranjar uma mochila; levarei só o estritamente necessário, mas tudo deverá ser de boa qualidade. Levarei a Bíblia; quanto aos pequenos volumes de "Lettres à un jeune poète" e do "Livre d'heures", encontrarei um canto para os meter no meu saco? Não levarei fotografias dos que me são queridos, prefiro atapetar as minhas grandes paredes interiores de rostos e de gestos que reuni na minha numerosa colecção e que me acompanharão sempre."

"Journal 1941-1943" (Etty Hillesum)


Etty conjectura sobre o que teria de fazer se acaso tivesse já no bolso a ordem de requisição para a Alemanha.

Nenhum sinal de revolta contra um destino terrivelmente injusto. Nenhuma ilusão, mas também nenhum desespero.

As suas preocupações e o conteúdo da sua bagagem são reveladores duma vontade de conservar até onde for possível a saúde do corpo e do espírito.

Sacrificaria Rilke, apesar da sua enorme admiração, mas não a Bíblia. Até o momento em que o próprio Livro tivesse de entrar na sua colecção imaterial.

A sua última carta foi lançada do comboio para Auschwitz e recolhida por camponeses que a meterem no correio. Nessa altura ainda faz uma citação e termina com um "até à vista".

Depois, é o silêncio e a imagem das câmaras de gás.

Aquele "até à vista" foi profético. Não se encontraram apenas os quatro amigos a que Etty se referia mas todos os novos amigos que se tornaram os seus leitores.

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